Nossas memórias e sensações podem enganar: não há como ter certeza de nada
Todos nós temos o hábito de nos apegar a nossas convicções. Na verdade, quanto mais convicções arraigadas, mais fácil fica viver a vida. Essa ideia de repensar, questionar — tão própria do método filosófico –, não deixa de ser um processo perigoso, podendo levar a sentimentos muitas vezes insuportáveis para a pessoa. Veja, por outro lado, o homem que segue alguma seita ou até mesmo um guru; ele vai estar confortavelmente acomodado na solidez das suas verdades. O problema é que nós somos enganados o tempo todo.
Não vou aqui falar especificamente de seitas ou gurus. Não tenho afeição nem por um, nem por outro. Claro que as seitas e os gurus enganam as pessoas em benefício próprio, mas esse não é o ponto. A questão principal é que nossos conceitos são formados a partir de experiências sensoriais que nós temos. Aquilo que a gente vê, aquilo que a gente escuta, o que a gente sente. Quanto mais aprendemos sobre os nossos sentidos, mais percebemos que eles são falhos e limitados.
Tudo que a gente percebe sensorialmente precisa então ser processado e armazenado como um tipo de arquivo de memória. É com esses objetos que nossa mente vai lidar, não com o objeto real, mas com a imagem dele, com o objeto imaginado. Em princípio a gente pensa que o objeto imaginado é uma cópia fiel do objeto real, mas não é. Basta você olhar atentamente para um objeto qualquer à sua volta e então tirá-lo do seu campo de visão. O objeto agora imaginado é muito mais distorcido e menos nítido que o real, quase fantasmagórico.
Esses objetos são então armazenados de acordo com um certo fio narrativo e isso tem um motivo. Nossa cabeça não lida bem com lacunas. Sabe quando você bebe demais e no dia seguinte fica tentando juntar as imagens fragmentadas do que aconteceu, tipo no filme "Se beber não case"? Pois é, as memórias embaralhadas e com lacunas provocam uma profunda inquietação na gente.
Para evitar isso nós somos capazes de desenvolver falsas memórias, para satisfazer o nosso aparelho psíquico e deixar o menor número de perguntas sem resposta. Isso é muito comum na infância, onde muitas das lembranças mais precoces que nós temos não são lembranças de fato, mas falsas lembranças que formamos a partir dos relatos de outras pessoas. Muitas vezes as lembranças são formadas para encobrir uma lembrança traumática (como cita Freud em seu texto Lembranças Encobridoras) ou mesmo como materialização de um desejo, como o mesmo Freud cita na célebre Carta 69 a Fliess. Nessa carta ele estabelece a hipótese de suas pacientes histéricas sofrerem não de um abuso sexual na infância real, mas sim de um abuso imaginário.
Esse tipo de memória falsa também é muito frequente na outra ponta da vida, notadamente em pacientes com quadros de demência. Às vezes a gente fica preocupado com longas narrativas: "Ah, doutor, ontem saí com meu marido para fazer compras, a gente estava muito preso em casa, sabe? É essa doença terrível, esse corona". Olho sobressaltado para o familiar que me tranquiliza: "que nada doutor, meu pai morreu tem doze anos já, ela passou o dia em casa ontem". Menos mal. Nesse caso específico, as falsas lembranças são chamadas confabulações.
Você talvez esteja se pensando se as suas crenças religiosas ou no seu guru estariam abaladas por essas informações, não é a intenção. Só quero dizer é que nosso conhecimento é formado a partir de um longo telefone sem fio, onde existem partes faltantes e contraditórias em todo momento, como num roteiro ruim escrito às pressas. E é o nosso trabalho aperfeiçoar essa narrativa a cada momento.
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