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Blog do Luiz Sperry

'Ser cotista não é ser beneficiado', conta estudante negra de medicina

Luiz Sperry

15/06/2020 04h00

Na semana passada, quando me peguei a observar com mais cuidado o racismo dentro da área médica, me deparei com a Larissa Alexandre. Apesar de ser estudante na mesma faculdade onde estudei há quase 20 anos já — a FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) –, as realidades são completamente diferentes. Por trás da aparência frágil e dos modos gentis, a jovem de 24 anos, moradora do Itaim Paulista, na Zona Leste de São Paulo, apresenta uma determinação inabalável.

Também, não podia ser de outro jeito. Só para chegar na faculdade são 3 horas no transporte público, todos os dias. "É horrivel", conta. Outro problema recorrente é a desconfiança de colegas e professores, pois "eu tenho estampado na minha pele que usei cotas raciais". Mas nada disso parece ser um impeditivo para ela, pelo contrário. Larissa se alimenta de desafios. O próximo passo? "Cirurgia", diz ela.

Eu, que não sou jornalista nem nada, resolvi continuar essa conversa, truncada nesses períodos de pandemia por atendimentos online, para mim, e provas de final de semestre, para ela.

Luiz Sperry: Então, na faculdade é bem frequente que as pessoas tenham pais ou parentes médicos. Eu mesmo tenho pai e mãe médicos. Você tem algum médico na família ou próximo que vocês acha que tenha te inspirado? De onde veio essa ideia?

Larissa Alexandre: Exatamente, na faculdade é muito comum o estudante de medicina que tem uma linhagem na família que estudou medicina, geralmente o pai, a mãe, etc. No meu caso, ninguém da minha família fez medicina nem sequer fez faculdade pública! Todos os graduados fizeram faculdade particular e só minha mãe que é da área da saúde (enfermeira).

A minha motivação para fazer medicina foi realmente minha, unindo o gosto pelos estudos que eu sempre tive e uma enorme aptidão para as áreas biológicas. Também sempre gostei muito de desafios e acho que o que sempre me moveu foi a vontade de romper com o que está pré estabelecido pra quem é da periferia: sair do ensino médio e ingressar no mercado de trabalho. Claro que tive essa possibilidade porque minha família me ajudou minimamente. E essa não é uma escolha que todas e todos que vem da minha realidade podem fazer.

LS: Quais vantagens você acha que pode ter tido que te permitiram ultrapassar essa barreira aparentemente intransponível?

LA: É muito louco pensar que o que é visto como básico para muitos da minha turma, ou para muitos no geral, para mim é visto como vantagem. A minha perspectiva de vantagem foi não precisar contribuir com o meu salário para as contas de casa e assim conseguir financiar meus estudos preparatórios para o vestibular. E assim remar contra a maré do que estava preestabelecido.

LS: É muito louco também a gente pensar (ou não pensar) que isso tudo seja uma enorme vantagem. Não era incomum entre alunos vindos de escola pública, super minoritários, um discurso triunfalista do tipo "eu consegui, todo mundo pode conseguir, basta se esforçar como eu". Você percebe entre a sua turma essa visão meritocrática, mesmo se beneficiando de cotas?

LA: A visão meritocrática é como se existisse no subconsciente de qualquer estudante da faculdade. Ás vezes eu me pego reproduzindo o discurso da meritocracia!

Porém, é muito evidente pra mim como meus amigos que ingressaram por cotas sociais: para quem estudou em escolas públicas no ensino médio, se referir aos cotistas raciais como "cotistas". Eu tenho estampado na minha pele que usei cotas raciais, assim que as pessoas descobrem que fiz ensino médio em escolas públicas. Só que, quem ingressou por cota não racial, acaba tendo passibilidade na faculdade e não é visto como "cotista".

Luiz, entenda que, ser cotista não é ser beneficiado. Um médico que tenho muito apreço e admiração me disse semana passada: eu vejo a cota como um pequeno curativo, porque ela trata na superfície um problema que é estrutural

LS: Outra coisa que chama atenção é que para uma parte grande da população não é normal nem tentar USP, muito menos USP-Medicina. Quando foi que você achou que dava pra entrar e que a chance era real?

LA: Existe uma música dos Racionais Mc's que se chama: "A Vida é Desafio". O meu desafio sempre foi romper com a barreira social. Para mim, quanto mais diziam que algo não era pra mim, mais eu me fortalecia para provar pra mim mesma que não era pra ser assim, eu não podia parar! E o pior é você fazer isso sem nenhum espelho a seguir! Eu trilhei um caminho muito árduo de cinco anos de cursinho, trabalhando, estudando, dando aulas, enfim! Não posso de novo entrar no discurso da meritocracia, mas já que era para partir do ponto de partida mais longe, eu queria alcançar o pódio mais alto.

LS: Conversando com você dá para sentir que há uma cobrança muito forte. Vem mais de fora ou você se cobra sempre assim?

LA: Eu sempre me cobrei muito uma excelência acadêmica, desde criança. Isso talvez perpasse o racismo velado que eu sempre sofri desde criança. O meu primeiro racismo sofrido que eu lembro foi aos 4 anos de idade oriundo de uma professora. Mas, sempre há a cobrança externa e essa corrobora para uma cobrança interna!

LS: Como foi essa questão com a professora?

Nossa, esse é pesado. Eu estudava em uma escola particular e já sabia ler e escrever. Ela não falava comigo, não me abraçava, não valorizava o fato de eu já ser bastante avançada. Até aí tudo bem. Teve uma vez que teve um brinde na escola e a gente ia ganhar um copo do Digimon [um desenho da época]. Só que meus pais não leram que tinha que levar 2 reais para pagar o copo. Ela então me deixou sem copo porque disse que meus pais não teriam condições de pagar depois, sendo que ela deixou outras crianças pagarem depois. Fiquei chorando no canto da sala e fiquei até doente depois disso. Meus pais brigaram com a diretora e até me tiraram da escola, deu a maior confusão.

LS: Uma vez dentro da faculdade de medicina depois de tanto esforço, você ficou maravilhada ou decepcionada? 

LA: O sentimento de dentro da faculdade é sempre de abaixo do esperado. Acho que eu trato a faculdade com um certo grau de apatia que ela me recebe. É difícil demais estar em um espaço que eu não me reconheço, que não me representa institucionalmente.

Mas, eu reconheço que isso está mudando, o nascimento do Núcleo Ayé (Coletivo Negro) e as cotas raciais acabam por colocar essa representatividade mais em evidência.

LS: você demora três horas pra chegar na Faculdade, as pessoas te subestimam, as instituições têm uma série de limitações que atuam pra derrubar a moral dos estudantes. De tudo isso o que te é mais doloroso ainda, mesmo com tudo que você vem conseguindo?

LA: Luiz, a falta de reconhecimento e pertencimento ao lugar. Eu sinto a força do racismo estrutural muito forte na faculdade, nos hospitais e na saúde. Eu tenho que me provar a todo tempo o que eu faço, o que eu sei e o que eu posso! Acho que isso de ser subestimada me acompanhará por bastante tempo, acredito.

LS: Como você enxerga o futuro do Faculdade sob essa nova perspectiva de democratização do acesso das pessoas a essas áreas?

LA: Como eu falei do pequeno curativo lá atrás, a gente sabe que é uma democratização virtual! Se todas as pessoas que ingressarem sob essas condições não pautarem isso, não encorajarem outras pessoas, não se autoafirmarem, não pautarem pesquisas da temática negra e de outras minorias, não levarem a USP às periferias através de ações afirmativas, essa esperança de democratização pode não se mostrar realmente efetiva! Mas, eu sigo otimista de que não só eu como os que vieram comigo, assim como os estudantes que estão por vir, farão a diferença.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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