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Blog do Luiz Sperry

Racismo, psiquiatria e psicanálise: onde estão os negros nessa área?

Luiz Sperry

08/06/2020 04h00

Crédito: iStock

– Doutor, o tema essa semana tem que ser racismo, você tem que falar sobre a saúde mental da população negra.

Quem fez a sugestão foi a Leitora Misteriosa. Ela adora dar palpites e sugestões, cheia de ideias. Em geral as ideias são boas mesmo, e acabo por acatá-las e usar no texto. Mas dessa vez a sugestão tinha um que quase de imposição: você tem que falar de racismo.

Parto do princípio que a Leitora Misteriosa seja branca, inclusive parto do princípio que seja mulher também, já que seu avatar é uma imagem da Disney e não a conheço pessoalmente. Não pensei em nenhum momento em escrever sobre outra coisa, inclusive porque não se fala de outra coisa, e quando as pessoas estão muito fixadas num assunto vale escrever sobre ele.

Comecei o processo como sempre faço quando falo de um assunto com o qual não estou familiarizado: a gente começa pesquisando. Mas logo de saída minha estrada entortou: fora o óbvio "saúde mental – racismo pesquisar", não vinha nenhum texto, nenhuma recordação, nenhuma imagem que me fizesse ir um pouco mais adiante. Claro que vieram questões já tratadas principalmente no campo da psicanálise, como o antissemitismo enfrentado por tantos, inclusive pelo próprio Freud, que saiu da Áustria fugido num rabo de foguete. Mas racismo e genocídio contra pretos, que é o que a gente está tratando agora, aqui e lá fora, não tem registro nenhum.

Outro dia reparei na letra da canção do Gilberto Gil "Tradição" que fala: "no tempo que preto não entrava no Bahiano, nem pela porta da cozinha", criticando o elitismo racista do Clube Bahiano de Tênis, em Salvador. Não me dei conta que estudei em escolas onde pretos também não entravam, inclusive na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Não seria um exagero se dissesse que tive 1% de colegas pretos nesses anos todos de estudo. Se você me perguntar o nome de 10 médicos pretos, eu não consigo dizer para você. Entre meus professores, foram apenas dois. Um dos poucos que fizeram faculdade comigo morreu antes de terminar a residência. Assassinado.

Por conseguinte, a chance de haver um psiquiatra negro é muito menor. E não havendo psiquiatras negros é muito mais improvável que se conduzam linhas de pesquisa sobre o assunto, é muito mais improvável que se implemente alguma política pública sobre o problema. A medicina no Brasil é uma área quase que exclusivamente branca num país de maioria negra.

Não é preciso fazer muito esforço para lembrar os médicos cubanos, quase todos pretos, sendo xingados de escravos por outros médicos, todos brancos, o ódio racial voando junto com os perdigotos. O ódio aos médicos cubanos, que vai muito além de qualquer falha que o programa pudesse ter (e de fato tinha), mostra que o problema não é resultado apenas da diferença de oportunidades que as pessoas tiveram lá atrás, mas de um sistema que ativamente tenta tirar os negros completamente desse campo de atuação. "Ah, mas nós estávamos preocupados com a qualidade do atendimento!"- Mentira! Nunca estiveram, ainda hoje vocês estão aí defendendo cloroquina. Aliás, os cubanos que permaneceram no Brasil receberam recentemente uma nova licença para trabalhar em época de pandemia. Para morrer na linha de frente ninguém faz ressalva.

Pois não é menor o espanto quando me viro para o campo da psicanálise e vejo, ou melhor, não vejo, linha sobre o racismo. Justo a psicanálise, que tem como uma de suas pioneiras a lendária Virgínia Bicudo, cuja trajetória é sempre lembrada, mas poucas vezes seguida. Em parte por ser uma ciência feita pela burguesia para a burguesia, mas não só por isso.

A psicanálise teve tempo e interesse em se tornar uma terapia para as massas e ainda hoje ocupa um lugar de destaque entre as ciências psicológicas. Sempre se marcou por ser atuante no que concerne uma integração do social com o mundo psíquico. Podemos encontrar grupos de estudo sobre a condição da mulher, dos LGBTQIA+ em seus variados recortes, das vítimas de violência doméstica e de violência política. Não conheço nenhum grupo que seja específico de racismo. Claro que isso está diretamente relacionado à dificuldade da psicanálise de se democratizar e chegar a todos que poderiam dela se beneficiar.

Claro que ao longo dessa breve pesquisa, tomei conhecimentos de pessoas e grupos bastante sérios que tratam da questão. Mesmo assim ainda é mais fácil achar correlações entre a psicanálise e o nazismo ou antissemitismo do que racismo no Brasil, como se a gente estivesse na Alemanha ou Israel. Um dos poucos autores negros importantes é Frantz Fanon, antilhano de nascimento, depois radicado na Argélia. Fanon fala como negro, mas também como estrangeiro num país colonizado e depois como estrangeiro em outro país colonizado. Sem dúvida que a questão do racismo é marca de seu pensamento, mas não é como aqui, onde se é não-pertencente dentro do próprio país. 

Desse modo, infelizmente é impossível se fazer um panorama da saúde mental da população negra no Brasil. Existem constatações, por inferência, que, sendo a maior parte da população e sendo vítima de violência sistemática (policial inclusive), é uma parcela que está mais vulnerável aos transtornos mentais de todos os tipos. Por ser parcela da população com menos acesso aos recursos de saúde mental, os casos tendem a se agravar e se cronificar nessa parte da população. Basta ver a cor da Cracolândia para se ter uma ilustração.

Mas nem todas as notícias são ruins. Apesar da minha experiência pessoal apontar nesse sentido, temos grandes variações regionais pelo país. Graças às políticas de cotas, a presença de negros no curso de medicina saltou de 8,4% em 2010 para 24,6% em 2018. Mesmo assim ainda é o curso superior onde se vê a menor presença de pretos e pardos (a média entre todos os cursos é de 35,7%). Na própria Faculdade de Medicina da USP as cotas começaram pra valer nos últimos dois anos apenas, mas a diferença já pode ser percebida. Hoje são cerca de 50 alunos beneficiados por essa política de inclusão, o que é uma enormidade perto de um ou dois por turma, ou mesmo nenhum.

É nesse contexto que a política de cotas parece ser fundamental. É necessário um passo além, e esse passo não pode ser dado por mim, que sou branco. Não posso fundar um grupo de médicos contra o racismo nem de psicanalistas, não faria sentido nenhum. Mas posso lutar pela inclusão dessas pessoas no sistema, porque sem isso, não há nenhuma esperança.

*Com a colaboração da acadêmica Larissa Alexandre, da Faculdade de Medicina da USP e da psicanalista Vivian Alvarez.

 

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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