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Blog do Luiz Sperry

Como será o mundo depois da quarentena? Reflexões sobre as possibilidades

Luiz Sperry

13/04/2020 04h00

Crédito: iStock

Enquanto estão todos em confinamento, ou pelo menos quase todos, uma das perguntas que mais se faz é: como vai ser depois que tudo acabar? Respondo de antemão que não faço a menor ideia, e se você entrou aqui com a perspectiva de uma sacada mirabolante, considere-se desde já desapontado. O que não nos impede contudo de pensar nas possíveis respostas desse futuro desconhecido.

A primeira vertente que observamos é a dos otimistas. Gente que acha que a reclusão forçada, as privações e outras agruras que sofremos agora e no porvir acabarão por nos levar a um sentimento mais solidário, fraterno e humano. É aquela coisa que em parte já acontece, tanto no macro, quanto no micro. O micro são as redes capilares de solidariedade, gente se virando e se ajudando, aquela coisa do "compre do pequeno produtor", gente fazendo máscara para doar, porque a bondade, justiça seja feita, sempre esteve por aí. Já o macro é você ver um esforço quase que unânime para fazer com que o governo pague a tal renda básica de emergência, e o governo, que prega austeridade total de gastos para esses casos, mesmo que de má vontade, pagando.

Existem também os pessimistas, pois se a crise é capaz de extrair o que há de melhor em nós, também é capaz de extrair o pior. Ainda não chegamos no pico, temo que não chegamos perto dele. Vamos passar por situações bastante trágicas. Acabo de escutar aqui que Manaus entrou em colapso. Entrar em colapso significa que não tem mais vaga no hospital, não tem mais respirador, não tem mais equipamento de proteção para a equipe. Tudo isso junto ou um pouco de cada coisa, não importa. São nessas situações que as pessoas perdem a cabeça. Aí vale a triste máxima "farinha pouca, meu pirão primeiro".

Existem ainda os céticos. Disse Antonio Prata, via Twitter: "Não sei não, mas me bateu uma intuição de que quando a quarentena acabar vai dar uma deprê geral. Não por causa da destruição humana e econômica deixada pelo vírus, mas porque vamos nos dar conta de que a vida 'de antes' para a qual queremos tanto voltar não era lá essas coisas." Não sei a vida dele, mas a minha me parecia bem melhor do que está agora, embora eu não tenha exatamente do que me queixar. O problema é que a vida de muita gente não vai voltar porque não vai existir mais. As pessoas que se foram, os bens, os empregos, tudo.

O tamanho da mudança está relacionado ao tamanho do luto. Mas o luto, a magnitude da tragédia, por si só, não faz nenhuma mudança propriamente radical. Tomemos nessa semana de Páscoa outro exemplo bíblico. Não houve tragédia maior que o Grande Dilúvio. Todos morreram, exceto Noé, sua esposa, os três filhos e as respectivas; o resto se afogou geral. Diante disso era para a humanidade tomar jeito e nunca mais sair da linha, certo? Errado! Não tomou jeito nenhum, continuou cometendo os mesmíssimos erros. Se nem o Grande Dilúvio foi capaz, o que dizer do covid-19?

Por outro lado, podemos pensar nas Grandes Guerras, que de uma maneira ou de outra, acabaram por levar à criação da ONU (Organização das Nações Unidas) e diversas organizações de cooperação multilateral que persistem até hoje em dia, como a própria Organização Mundial de Saúde, tão fundamental hoje em dia.

Pessoalmente acho que o mundo vai continuar sendo o mundo, o Brasil vai continuar polarizado, mas algumas linhas que foram cruzadas recentemente e uma parte desse discurso absolutamente tresloucado serão punidos de forma avassaladora, praticamente bíblica até. Porque a realidade da epidemia se sobrepõe a qualquer discurso.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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