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Blog do Luiz Sperry

Metanálises e reputação da Cochrane: entenda melhor como estudos são feitos

Luiz Sperry

13/01/2020 04h00

Crédito: iStock

Muitas das vezes em que escrevo aqui sobre psiquiatria e saúde mental, acabo por citar algum tipo de estudo estatístico. Isso me veio em mente por conta de um artigo contando sobre o conflito na prestigiada Cochrane Collaboration, uma das instituições científicas mais importantes do mundo. Achei por bem fazer um post falando um pouco mais sobre esses estudos e de como eles são produzidos.

Primeiro, o conflito. A Cochrane é um tipo de ONG (organização não-governamental) cuja função é fazer estudos sobre saúde, com o intuito de checar se medidas que são normalmente aceitas como padrão são de fato efetivas. Por que eles se dão a esse trabalho? Porque grande parte dos estudos médicos são patrocinados pela indústria farmacêutica que tem a tendência a puxar a brasa para a sua sardinha. Como é um mercado que movimenta por ano no mundo algo em torno de um trilhão de dólares (isso mesmo, um trilhão), você pode imaginar o esforço que se pode fazer para puxar um monte de brasa para esse trilhão de sardinhas.

A Cochrane faz revisões sistemáticas, também chamadas de metanálises, que são estudos que englobam os outros estudos sobre determinado assunto. São trabalhos em geral muito bem feitos e chegam, eventualmente, a resultados inesperados. Eu, como médico e psiquiatra, vejo no dia a dia o respeito que meus colegas têm com essas metanálises. Basta alguém falar: "a nova revisão da Cochrane diz…" e o que quer que seja dito depois será tomado como verdade.

E que estudos são esses que a Cochrane usa para fazer seus trabalhos? Existem vários tipos. O mais simples deles é o relato de caso. Por exemplo, eu estou trabalhando no hospital e chega uma senhora dizendo que ela estava com depressão mas tomou chá de erva-de-golfinho e ficou boa. Eu posso mandar para uma revista científica "o caso da depressão que melhorou com erva-de-golfinho" e está feito. A vantagem desse estudo é que ele é o mais simples de fazer, mas por outro lado não significa muita coisa. 

Mas outro colega pode ler o artigo e pensar, "nossa, conheço quatro pacientes que melhoraram da depressão com erva-de-golfinho", e aí ele manda "quatro pacientes com depressão que usaram erva-de-golfinho". Esse estudo é o que chamamos uma série de casos, obviamente já é mais relevante (em tempo: não existe erva-de-golfinho, ok? É apenas um exemplo hipotético, não adianta procurar para comprar).

A partir disso pode-se fazer um ensaio clínico. Eu pego tantos pacientes com depressão e dou para eles uma certa quantidade de erva-de-golfinho para ver se eles melhoram. Grandes ensaios clínicos envolvendo milhares de pacientes são estudos muito bons para testar a eficiência de medicações, principalmente se forem controlados por placebo (que é quando todo mundo acha que está tomando o remédio, mas uma parte toma uma pílula falsa).

Existem outros estudos, como estudos ecológicos, estudos de coorte, prevalência ou caso-controle, cada um tendo vantagens e desvantagens, mas todos eles muito úteis à sua maneira.

Uma metanálise junta todos os estudos de variados tipos sobre um determinado assunto e compara dando o devido peso a cada estudo, assim como apontando possíveis distorções. Estudos melhores e mais rigorosos, com muitos pacientes, têm um peso muito maior que estudos menores com poucos pacientes.

Voltando à Cochrane, o que houve foi que um dos fundadores, chamado Peter Gøtzsche, disse que ela já não é mais a mesma. Desde que o novo CEO Mark Wilson assumiu a chefia em 2012, ela estaria mais interessada em vender seus serviços justamente para a indústria farmacêutica. Depois de muito bate-boca, Gøtzsche foi expulso da turma em 2018, mas mesmo assim ele continua falando horrores da instituição e seus desafetos, que ficaram com a imagem bem arranhada. 

Talvez quando se falar em "revisão Cochrane" não caiam mais todos de joelhos em sinal de reverência. Ou talvez ainda caiam, pois todo mundo, médicos inclusive, precisa acreditar em algo para reverenciar.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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