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Blog do Luiz Sperry

Por que nós (e a psiquiatria!) precisamos resgatar a subjetividade

Luiz Sperry

23/12/2019 04h00

Crédito: iStock

Reli recentemente o fantástico livro "Nós", de Yevgeny Zamiátin. É um romance russo dos anos 20 que descreve um futuro distópico, onde tudo é regido pelo sistema do Estado Único. Tudo segue uma ordem lógica e matemática e os indivíduos –designados então como números — seguem estritamente o papel social que lhes foi designado. O que impera é a lógica matemática.

Onde ficariam então as outras questões, mais por assim dizer, humanas? Ficam subordinadas à própria lógica matemática. A música e a arte em geral é criada a partir de uma equação própria, que tende a criar harmonias perfeitas. As relações interpessoais são contingenciais e o sexo e a reprodução são regulamentados pelo Estado Único.

O que me chamou a atenção é a necessidade do tal estado em suprimir tudo que seja subjetivo e tentar substituir por uma visão absolutamente objetiva das coisas. E nesse momento talvez você se pergunte: como assim subjetivo? 

Subjetividade é de certo modo o contrário de objetividade, mas não exatamente. Por exemplo, todos nós temos alguma ideia do que seja objetividade. É um tipo de conhecimento que temos sobre determinada coisa. Se eu pedir para você leitor, falar sobre um assunto qualquer, você provavelmente vai falar algo objetivo sobre ele. Árvores de Natal, por exemplo. Provavelmente você vai dizer que em geral são pequenos pinheiros ou ramos dele, enxertados geralmente em vasos, que são decorados nessa época do final do ano como parte das festividades do Natal. Você pode ainda dizer que pinheiros são árvores de clima temperado e isso está associado à origem europeia da tradição de se festejar o Natal. Tudo isso são informações objetivas sobre as árvores de Natal.

Mas e se eu perguntar: o que você acha das árvores de Natal?V ocê vai me trazer uma série de informações, igualmente verdadeiras a respeito delas. Você pode dizer que você adora montar árvores de Natal porque você sempre fazia isso na sua infância, quando passava o Natal na casa dos avós. Ou poderia então dizer que você sempre se revolta com elas porque você lembra como um feriado de amor e união foi deturpado pelo capitalismo podre a cada vez que você vê uma delas você tem que conter um acesso de raiva. Essas são visões subjetivas sobre o mesmo objeto.   

O que tem ocorrido nestes últimos tempo é justamente uma forte desvalorização da subjetividade e uma supervalorização da objetividade. O que vale é aquilo que pode ser observado e é comum a todos, de uma forma bastante massificada. Isso não é necessariamente um problema, mas a visão objetiva de algo não consegue nunca substituir a visão subjetiva. 

A psiquiatria, por exemplo, tem tentado ao longo dos últimos anos ser muito objetiva. Ouvi há alguns anos de um professor mais ou menos importante: "a psiquiatria hoje em dia tem critérios tão objetivos quanto qualquer outro campo da medicina, não somos muito diferentes da reumatologia". Não sei se a comparação infeliz com a reumatologia -uma especialidade ainda cheia de incertezas – foi proposital ou não. Mas a questão é que a reumatologia lida com objetos que são muito objetivos. Tem dores e inflamações que são facilmente identificados de forma objetiva.

Enquanto isso o objeto de interesse da psiquiatria é eminentemente subjetivo. Os pensamentos, sentimentos e impressões, por mais cuidadosos que possamos ser, sempre são algo que é contado por alguém, é sempre uma versão. Não é por acaso que se disseminou o uso de escalas para quantificar os sintomas e essas escalas acabam por hipervalorizar sintomas que sejam mais fáceis de se definir objetivamente, como o sono, por exemplo. E mesmo o sono pode ser uma experiência subjetiva. Cansei de ver gente reclamando que não pregava o olho ser corrigido por algum familiar, que disse que o paciente em questão dormiu, sonhou e roncou a noite toda.

Não acho que estejamos à beira do totalitarismo estatal. Muito pelo contrário, o que temos visto é justamente uma histeria anti-estado, inclusive dentro do próprio estado. Mas esse empobrecimento da subjetividade, da capacidade de reflexão é algo em curso e bastante fácil de se observar. Precede inclusive os ataques mais diretos ao sistema educacional como um todo, que temos visto cada vez mais fortes e presentes, como por exemplo a paranoia em relação a Paulo Freire e à intelectualidade em geral. Isso sem dúvida é parte dos problemas que temos hoje, tanto em relação aos nossos problemas psíquicos, quanto a tudo mais.

Um excelente Natal a todos!

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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