Quando tentamos reprimir algum desejo, ele pode 'escapar': eis o ato falho

Crédito: iStock
Aconteceu com uma amiga minha, dentista. O avô levou o neto ao seu consultório, por ocasião de uma obturação que precisava ser feita, coisa simples. A dentista, sempre falante e simpática, passou o tempo todo perturbada. A peruca do avô era coisa hedionda, tanto na cor quanto no formato, daquelas que depois de ver uma vez, não conseguimos mais "desver". Aliviada ao terminar, passou as orientações finais:
– Pronto, senhor! Agora é só prestar atenção e não comer nem beber nada nas próximas duas horas, senão pode cair a peruca!
Claro que foi o maior vexame, o avô ficou ofendido e prometeu que jamais voltaria. Mas, justiça feita a nós, que eventualmente somos vítimas da estética duvidosa dos implantes capilares alheios, existem coisas que ultrapassam nossa capacidade de controle. Quando tentamos reprimir algum desejo ou pensamento muito intenso, esse muitas vezes pode escapar, como no exemplo acima. Eis o ato falho.
O ato falho é uma expressão de linguagem que surge como um erro ou uma troca de palavras. Você quer dizer uma coisa e acaba falando outra. A interpretação mais lógica é justamente que você queira dizer exatamente a outra, aquela que você disse, e não a que você pensou inicialmente. Por exemplo, quando você chama o seu namorado atual com o nome do ex, você provavelmente estava pensando no ex, mais do que gostaria de admitir, embora não necessariamente com segundas intenções.
Então qual seria a função do ato falho, senão nos provocar constrangimento e vergonha? Em princípio ele não tem função, é um erro do sistema. Isso é claro se partirmos da premissa de que existe um grande sistema de desejos inconscientes que são recalcados por uma parte do nosso aparelho psíquico, que permite que entremos em contato com apenas uma pequena parte deles. Esse aparelho repressor faz com que os desejos proibidos ou inadequados sejam armazenados de forma inconsciente, num processo que denominamos recalque.
Quando as pessoas falam corriqueiramente que uma pessoa é "recalcada", temática comum da nova MPB, elas chegam bem próximas do conceito psicanalítico original da palavra. A recalcada do funk seria uma garota com um desejo reprimido que aparece, não como ato falho, mas sim como um sintoma de agressividade e maledicência. É de fato um dos possíveis desfechos do desejo recalcado, mas não o único.
Os desejos têm diversas maneiras de serem resolvidos. Podem inclusive, vejam só, ser realizados e satisfeitos. Mas em geral essa é uma minoria; a esmagadora maioria acaba por ser soterrada no inconsciente. E ficam lá até que a realidade faça com que esbarremos neles, como aquelas bombas da Segunda Guerra que não explodiram e de repente aparecem no quintal de um pacato cidadão. Assim como a bomba pode explodir ou não, o desejo recalcado pode provocar um estrago maior, no caso de um sintoma neurótico, ou menor, como no exemplo de um inofensivo ato falho. Meu trabalho, em última instância, é desarmar essas bombas, embora o risco de morrer seja um pouco menor.
Pois bem, apesar de o ato falho não ter propriamente uma função, ele é extremamente útil na clínica psicanalítica. Ele mostra o que nosso psiquismo se esforçou para esconder e é, em princípio, um caminho a ser seguido.
Como naquele momento da terapia onde o paciente fala algo como:
– Eu estava lá com a minha esposa, quer dizer, com a minha mãe…
E a gente mentalmente cerra os punhos, salta da poltrona, enche o peito e grita: Édipoooooooo!!!
Mas na prática é claro, apenas fazemos a ressalva:
– O que foi que você disse?
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