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Blog do Luiz Sperry

Em tempos de fake news tão enraizadas, a recusa da realidade se torna comum

Luiz Sperry

09/09/2019 04h00

Crédito: iStock

Uma das questões centrais do debate social e político que temos acompanhado é aquela que se dá a respeito da verdade. Lembro de uma fala genial de Arnaldo Jabor, anos atrás, que falava que "hoje não há mais respeito, não digo pela verdade, mas não há respeito nem pela mentira!". Foi profético. Mal sabia ele que a verdade e a mentira jamais seriam as mesmas.

Em geral as pessoas mentem o tempo todo. Nosso comportamento civilizatório exige que nós filtremos nossos pensamentos e desejos o tempo todo para que possamos conviver entre os nossos semelhantes de maneira harmônica, ou ao menos aceitável. Isso em si não é necessariamente um problema, embora seja importante a gente considerar que,  toda vez que a gente mente, a gente enlouquece um pouco as pessoas. Porque elas vão acabar tomando por verdade algo falso e isso em algum momento vai se chocar com a realidade. Por exemplo, se você fala com a pessoa "estou chegando" e na verdade você está saindo, passado um certo tempo a pessoa pode começar a ficar angustiada porque você ainda não chegou. Pode pensar que houve um acidente, assalto, desmaio e sabe-se lá o que mais. 

Essas pequenas mentiras tem como finalidade quebrar certos galhos no curto prazo, são "pedaladas mentais" que, se utilizadas com muita frequência, podem obviamente trazer outros problemas, como a perda da sua credibilidade a falta de paciência das pessoa em ter você por perto.

Mas a mentira atual, profetizada por Jabor há mais de 10 anos, é de outra natureza. É a mentira colocada de forma tão categórica que abala a nossa própria certeza da realidade. Isso acontece porque o nosso Eu tem que lidar com pressões diversas, vindas de todos os lados. Para isso o Eu utiliza diversos recursos, os chamados "Mecanismos de Defesa do Ego". E um dos mecanismos que está mais voga hoje em dia é a Recusa.

A recusa é um processo no qual o Eu, confrontado com uma ameaça proveniente da realidade, recusa a própria existência da realidade. Incapaz de aceitá-la, que é sempre dura e nos impõe limites muitas vezes insuperáveis, o Eu simplesmente apaga os traços da realidade que lhe são dolorosos. Hoje em dia, é comum ver pessoas falando abertamente em ideias delirantes que incluem "marxismo cultural" e "ideologia de gênero". São exemplos óbvios de pessoas que têm uma profunda dificuldade de aceitar que a realidade de 2019 é muito diferente daquilo que elas imaginaram que deveria ou poderia ser. Apagam então a realidade e a substituem por um complô bizarro (que sempre acaba passando por George Soros e terraplanismo em algum momento).

Quando alguém fala "mas e o PT?", está num processo de recusa, porque essa frase significa: considerando-se que a cada dia o governo se demonstra mais desastroso, eu vou ignorar todos os fatos e falar do PT para desviar o assunto. Assim como o reverso da moeda é igualmente verdadeiro. Quando o PT, confrontado com diversas evidências de corrupção gritava: "mas é só caixa dois!", também estava num processo de recusa (como se caixa dois não fosse crime).

E vemos ao vivo o preço de se utilizar a recusa de modo insistente e exaustivo: perda de credibilidade e falta de paciência das pessoas em te ter por perto.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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