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Blog do Luiz Sperry

Tarja preta e vermelha: entenda por que os remédios são classificados assim

Luiz Sperry

27/05/2019 04h00

Crédito: Arte UOL/VivaBem

"Nossa doutor, o senhor nem parece psiquiatra". Já perdi a conta de quantas consultas começaram com essa frase. Nas primeiras vezes confesso que fiquei um tanto desapontado. Mas com o tempo percebi que era um possível elogio. No imaginário popular, parece que os psiquiatras têm uma aparência soturna e misteriosa, ostentam longas barbas brancas e falam pouco, geralmente de forma enigmática. Ah sim, e são desde sempre idosos.

Isso é um pequeno exemplo de como a prática psiquiátrica continua cercada de mistérios e tabus. Numa época em que a psiquiatria tem um enorme protagonismo na vida das pessoas e na saúde pública, ainda é assim. Mesmo com uma exposição midiática enorme, milhões de pessoas tomando medicações, suicídio em números quase epidêmicos, psiquiatras no rádio, TV e internet, uma parte enorme das pessoas ainda reluta em se consultar com esses profissionais e a usufruir de serviços de saúde mental em geral.

Um dos mitos mais frequentes diz respeito à medicação. Muitos pacientes têm pavor às famigeradas medicações de "tarja preta". Como se esses remédios fossem necessariamente os mais fortes, reservados àqueles casos sem solução e esperança. Tomar medicação de tarja preta seria uma antessala do hospício, de onde então eles nunca mais voltariam.

Isso não é verdade. As tarjas são uma regulamentação das medicações por parte da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que é o órgão responsável pelo nosso controle farmacológico. Existem basicamente duas: as tarjas vermelhas e as pretas. Nas vermelhas está escrito: venda sob prescrição médica. A grande maioria das medicações psiquiátricas são de tarja vermelha, como antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor. Em geral, são vendidos apenas se o paciente portar receita dupla e uma delas ainda fica retida na farmácia.

Já nas tais tarjas pretas pode-se ler: o abuso desta medicação pode causar dependência. Os principais representantes são, sem dúvidas, os benzodiazepínicos, como diazepam, clonazepam ou alprazolam. Mas ainda ostentam a tarja preta psicoestimulantes, como os moderadores de apetite anfepramona e femproporex, e mesmo medicações que a gente não usa na psiquiatria, como morfina e fentanil (que são analgésicos). São todas drogas que podem, em maior ou menor grau, causar dependência.

Entretanto, existem, curiosamente, drogas que escapam dessa classificação, por falta ou excesso de zelo. Alguns psicoestimulantes, como o metilfenidato e a modafinila não causam dependência, mas são de tarja preta.

Há alguns anos havia um antidepressivo chamado amineptina, vulgo Survector, que causava dependência e era controlado de tarja preta também. A sibutramina tem uma estrutura de antidepressivo, mas como é utilizada como moderador de apetite também recebeu o mesmo tratamento. Já a oxicodona, que é um opioide potente com diversos casos de dependência e mortes nos EUA (mas que não teve grande sucesso no Brasil), é de tarja vermelha. E o caso mais estranho de todos: o indutor de sono zolpidem. Em doses de 5mg, 6,25mg e 10 mg, é de tarja vermelha. Mas o comprimido de 12,5mg pede receita azul e leva a temida tarja preta.

Ironicamente, a enorme parcela de pacientes dependentes de remédios controlados é justamente a que mais se afasta do estereótipo de louco, segundo o senso comum. São pessoas que tiveram um problema de insônia ou ansiedade em algum momento da vida e foram medicadas de forma talvez pouco cuidadosa ao longo de anos a fio.

De minha parte, posso dizer: não temam os psiquiatras. Apesar dos meus esforços, a barba tem crescido grisalha e a aparência está de fato mais soturna. Mas é puro truque estético. Se há alguém que geralmente tem cautela com os remédios controlados somos justamente nós.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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