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Blog do Luiz Sperry

Quando a matemática abraça a medicina para, juntas, salvarem sua vida

Luiz Sperry

20/01/2019 04h00

Crédito: iStock

A medicina e as áreas da saúde se usam eventualmente de modelos matemáticos que hoje em dia são fundamentais para a boa prática médica. São modelos estatísticos que nos ajudam a prever qual coisas fundamentais, como qual a doença mais provável ou qual exame vai ser mais útil na elucidação do diagnóstico.

Esse é um dos motivos porque sempre tive um certo desprezo pela série "House" entre outras séries médicas. Sempre a doença era algo bizarro e improvável como "intoxicação por ouro" ou "febre do Nilo Ocidental". Para um estudante de medicina esse tipo de raciocínio pode ser desastroso. Imagine você no seu plantão e chega um paciente com febre dor de cabeça e manchas pelo corpo, aí você pensa: Febre do Nilo! Ocidental! Vai ser uma tragédia. Até existem casos raros no Brasil na última década, mas são raros e dispersos. Em contraposição, a nossa bem conhecida dengue tem sintomas parecidos e teve milhões de casos no Brasil nos últimos anos (sim, milhões mesmo, não é força de expressão). Ou seja, é muito mais provável que o tal caso hipotético seja dengue e não febre do Nilo, certo? Claro, em defesa dos roteiristas de série, entendo também que seria insuportável um seriado de TV mostrando gripes, crises de asma em inalação, algumas diarréias e um monte de atestados, que é o que consiste no dia a dia da prática médica em quase todos os lugares.

Pois bem, essa chance de alguém ter uma doença a priori, antes de qualquer intervenção é o que podemos chamar de probabilidade pré-teste, ou prevalência. Algumas doenças são facilmente encontradas, ou muito prevalentes. Outras são menos prevalentes, ou seja, mais raras.

Por outro lado, os profissionais tendem a ter um olhar viciado dentro da população. Um clínico geral ou médico de família (que é o médico com a formação mais abrangente que existe) vai dar uma importância e um peso diferente a queixas que os especialistas observariam de outra maneira. O que percebemos é que pacientes que passam em diversos especialistas acabam fazendo mais exames desnecessários e tomando mais medicamentos desnecessários.

Quem me conhece de perto sabe que tenho um senso de corporativismo bastante baixo, o que acaba por me levar a indisposição com alguns de meus pares. Mas acredito no pensamento agostiniano de que a crítica corrige, assim como a adulação corrompe, de modo que não me boto fora das críticas que exerço aos médicos (e aos psicanalistas também). Mas pense você médico, quando foi a última vez que um paciente te procurou no consultório (PS não vale) e você apenas deu orientações e disse a ele que se fizesse assim ou assado tudo ia ficar bem?

Porque é estatisticamente impossível que 100% dos pacientes que te procurem estejam de fato doentes ou tenham sido perfeitamente encaminhados.

O mesmo vale para você, paciente. Quando foi a última vez que você foi ao médico (PS não vale) e ele apenas te orientou e esclareceu sem a necessidade de medicar? Pergunto a mim mesmo, quando foi a última vez que um paciente saiu sem receita do meu consultório? Nesse caso, paciente de análise não vale.

Existe uma campanha da Associação Americana de Medicina Interna chamada Choosing Wisely (Escolhendo com Sabedoria) que tem por intenção justamente apontar e tentar corrigir as distorções. Lançada em 2012, se espalhou por diversos países, inclusive o Brasil, e mais de 400 recomendações acerca de procedimentos questionáveis ou incorretos já foram feitas. Porque o que vigora hoje é um sistema de saúde que obedece muitas vezes a regras de mercado, em detrimento da promoção de saúde de fato, que obviamente deveria ser seu objetivo final.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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