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Blog do Luiz Sperry

O trabalho pode ser a raiz de parte dos seus problemas

Luiz Sperry

12/11/2018 04h00

Crédito: iStock

Todo final de ano traz algumas certezas, como as festas de Natal e o especial do Roberto Carlos. Chega a ser previsível também que a partir de novembro todo mundo esteja meio enlouquecido, cansado, irritado e sem paciência para brincadeira nenhuma. E eventualmente temos a impressão subjetiva de que cada ano está um pouco pior –ao menos esse ano essa impressão se torna quase uma certeza.

Claro que o processo eleitoral botou fogo na cabeça e na alma das pessoas e, como não há disposição de paz de nenhum dos lados, o fogo vai continuar pegando. Teve a Copa do Mundo, na qual o Brasil confirmou sua posição secundária também no futebol.

Mas o que pega mesmo para deixar todo mundo surtado no final de ano são as questões econômicas, mais precisamente a relação doentia que as pessoas estabelecem com o trabalho –ou eventualmente com a falta dele. Não deixa de ser simbólico o fim do Ministério do Trabalho anunciado pelo futuro governo. O Trabalho, como instituição, está em crise.

Alguns retrucarão, afobadamente, que o fim do ministério não significa necessariamente uma mudança no funcionamento e na fiscalização da legislação trabalhista. E eles tem razão. Mas temos que pensar também que ou as pessoas passam a lidar com o trabalho de uma forma mais harmônica ou vai todo mundo enlouquecer e a sociedade vai pro brejo.

Não é de hoje que as relações de trabalho podem ser consideradas abusivas. A gente tende a pensar que o capitalismo estabelece relações de trabalho abusivas, mas isso não é verdade. As relações de trabalho tendem a ser abusivas porque as relações humanas tendem a ser abusivas desde sempre. Podemos considerar que já nos tempos bíblicos as relações de trabalho eram no mínimo inusitadas. Tomemos esse exemplo que está no Gênesis, narrado de forma mais bonita por Camões:

 

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não servia ao pai, servia a ela,

E a ela só por prémio pretendia.

 

Os dias, na esperança de um só dia,

Passava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assi negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;

 

Começa de servir outros sete anos,

Dizendo: – Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!

 

Moral da história: Jacob trabalhou sete anos para Labão, comendo o pão que o diabo amassou, para se casar com a filha Raquel. Labão, assaz larápio, deu-lhe a mão da outra filha, Lia, com a qual ele não queria exatamente se casar. Mas ele aceita e trabalha mais sete anos pelo direito de se casar finalmente com Raquel. Fora a questão de o sujeito se casar com a cunhada, que é um pouco perturbadora (ou atraente, dependendo do quão apegado você seja à moral bíblica), temos uma situação evidente de relação de trabalho abusiva. E nem entramos na questão da escravidão. Jacob pertencia à fina flor do jet set mesopotâmico da época. Imagina se fosse pobre.

Não temos relatos de como era a vida psíquica das pessoas no Velho Testamento. Mas nós sabemos que aquela época foi a última na qual as coisas boas caíram literalmente do céu. Nos últimos milênios tem sido o velho "ganharás o pão com o suor do seu rosto". E podemos dizer com certeza que as condições sociais, nas quais as condições de trabalho estão inseridas, são um fator determinante para a ocorrência ou não de quase todas as doenças mentais. Muito provavelmente o homem do Antigo Testamento era bastante perturbado do ponto de vista psicológico.

Essas condições de trabalho não são fruto do capitalismo. Segundo Daniel Lieberman, autor do fantástico "A História do Corpo Humano", o trabalho começou a ficar pesado com a Revolução Agrícola, há 12.000 anos. Até então o esquema era de caça e coleta. Saía, matava um búfalo, colhia uns cogumelos e ficava depois em cima, protegendo a carcaça e comendo tudo meio depressa, já que não tinha geladeira. A média de trabalho era de cerca de 4 horas por dia. Depois da agricultura o negócio ficou mais pesado, e assim persiste até hoje.

Existe uma imagem, alegórica, que determina oito horas de trabalho, oito horas de sono, oito horas de descanso. Evidente que isso não vale para todo mundo, mas não deixa de ser um padrão interessante. O problema é que as pessoas muitas vezes fazem 10 horas de trabalho, mais quatro horas de faculdade, mais três no trânsito e ainda falta o sono, o banho e o descanso. A conta simplesmente não fecha. Aí bate a depressão, a angústia, o pânico e o alcoolismo.

Se a gente prestar atenção, grande parte das pessoas entra nessa achando que é uma fase, que no final vai entrar uma promoção, uma participação nos lucros maior, um merecido descanso. Sem perceber que o sistema (e aqui estou falando do sistema capitalista onde a gente vive especificamente) não permite essa mobilidade toda. No fundo é um jogo de cartas marcadas. E ao final, ao invés da Raquel, sobra para a gente a Lia. E olhe lá.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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