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Blog do Luiz Sperry

Transtornos alimentares são assunto atual, mas existem há bastante tempo

Luiz Sperry

27/08/2018 04h00

Crédito: iStock

Junto com a dependência química, considero o tratamento dos transtornos alimentares como um dos mais trabalhosos da clínica e saúde mental. Logo de saída são dois terrenos onde há pouca ou nenhuma medicação disponível que seja de fato eficiente. São situações onde o médico precisa se colocar muitas vezes numa posição de força e fazer valer os contratos estabelecidos entre o paciente e as famílias. Mas o mais assustador é que são quadros onde a morte é sempre uma possibilidade à espreita.

Os transtornos alimentares não são um produto da modernidade como se pode imaginar num primeiro momento. Apesar de estar relacionado profundamente às questões culturais de nossa época, já existem relatos de anorexia há muitos séculos. Marcadamente no período medieval, esses quadros estavam relacionados então a uma forma de religiosidade e devoção dentro da doutrina cristã. Somente nas últimas décadas que passou a ser associado a um suposto modelo de beleza.

Quando a gente fala de transtornos alimentares, pensamos principalmente de anorexia e bulimia, embora existam outros. Na anorexia em geral a questão é emagrecer, já que a pessoa se enxerga muito mais gorda do que normalmente é. Mesmo estando evidentemente desnutrida, a anoréxica segue comendo muito pouco e perdendo peso, o que eventualmente pode ser fatal. A bulímica em geral não se apresenta tão emagrecida, mas tem um grande medo de engordar. Diferente da anoréxica que costuma se impor regimes de fome quase que incompatíveis com a vida, a bulímica classicamente apresenta episódios de compulsão alimentar, onde come uma quantidade imensa de comida, seguida por episódios purgativos, onde tenta se livrar desses alimentos, em geral através de vômitos (mas podem ser laxantes ou exercícios físicos intensos).

Sendo a fome e a vontade de comer características tão primárias do nosso funcionamento mental, é um pouco assustador que alguém se prive sistematicamente de alimento. Mas a um exame mais profundo, conseguimos perceber que todo o desejo e energia que canalizamos para os alimentos em si, no caso das anoréxicas, está canalizado para o controle da fome. O barato não é encher a barriga que nem a maioria das pessoas faz. O barato é controlar a fome, que é cada vez maior, numa versão esquálida do "no pain, no gain" (sem dor, sem ganho), tão popular nas academias de ginástica. As anoréxicas enxergam o emagrecimento como um desafio e ganhar peso um grande fracasso. Já as bulímicas podem ser consideradas em algum sentido como anoréxicas que se permitem um segundo prazer: o de ceder ao desejo. É claro que isso vem acompanhado com uma quantidade enorme de culpa.

O leitor mais atento deve ter notado que, mais uma vez os termos, anoréxica e bulímica no caso, estão no feminino. Não é por acaso, pois são doenças que acometem mulheres com uma frequência muito maior do que homens (mas não exclusivamente, claro). Chegamos aí à questão sexual da anorexia, que marca presença pela ausência. Tão marcante como a falta de apetite, é a falta de libido. O desejo de emagrecer, tão relacionado hoje em dia a um padrão de beleza, vem a serviço justamente do contrário. O emagrecimento excessivo acaba por aniquilar as formas da feminilidade no corpo, tornando-o em uma certa medida assexuado. É uma maneira de lidar com uma sexualidade que é insuportável.

Esses sintomas muitas vezes levam as anoréxicas e bulímicas muito próximas da morte. Surge então a necessidade de um grande trabalho, eventualmente de força, mas também de delicadeza, no sentido de recolocar os desejos em trilhos que sejam menos mortíferos. É um trabalho complicado, porque envolve entre outras coisas um papel muito atuante da família. E uma equipe que seja treinada para lidar com esses desafios.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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