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Blog do Luiz Sperry

Por que o eletrochoque é tão polêmico (e injustiçado)?

Luiz Sperry

16/07/2018 04h00

Crédito: iStock

Era lá pelo ano 2000. Pela primeira vez, botava os pés no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Lembro bem da nossa curiosidade, a psiquiatria era para o estudante de medicina sempre um terreno estranho. Mal-ajambrados em nossos jalecos, ansiávamos pela parte mais interessante da visita: o eletrochoque.

Isso tudo foi antes da grande reforma que houve alguns anos depois. Na época, o Instituto em nada lembrava as modernas instalações atuais. Suas janelas pequenas e gradeadas davam uma atmosfera semelhante ao Asilo Arkhan dos quadrinhos do Batman, lúgubre que só. Chegamos ao tal eletrochoque, que decepção. Numa grande sala, uma médica aplicava choques nas têmporas de pacientes sedados, que se estremeciam um tanto e eram levados por um enfermeiro para o outro lado da sala para uma breve recuperação. No fundo, tocava baixinho Frank Sinatra. Bastante monótono e sem dúvida nada atraente para aquele jovem estudante cheio de sonhos e ilusões.

Sem sombra de dúvida, o eletrochoque, nome coloquial da eletroconvulsoterapia (ECT), é o procedimento mais controverso da psiquiatria e provavelmente de tudo que se refere à saúde mental. Dos tratamentos que temos hoje, é o mais antigo, do final dos anos 30 do século passado. Os médicos na época perceberam algumas diferenças teciduais entre os cérebros de pacientes esquizofrênicos (que sofriam de psicose) e epiléticos (que sofriam de convulsões) e imaginaram que se causassem convulsões nos esquizofrênicos, eles possivelmente melhorariam da sua psicose. Hoje sabemos que as premissas fisiológicas estavam de uma maneira geral incorretas, mas a verdade é que, por linhas tortas, a ECT funcionou como nada havia funcionado até então.

Talvez justamente por isso foi utilizada a torto e a direito, muitas vezes sem critério nenhum –os medicamentos psiquiátricos só começaram a surgir já nos anos 50. Desde casos onde poderia ser benéfico, como transtornos do humor e psicoses, até em casos como "cura gay" ou mesmo como punição para pacientes muito agitados. O fato é que a partir dos anos 60, a ECT foi combatida violentamente como método de tortura e maus tratos do paciente psiquiátrico, recebendo uma má fama certamente injusta. Ainda hoje podemos ver em filmes como "Bicho de Sete Cabeças", de 2001, ou "Nise: O Coração da Loucura", de 2015, o procedimento é retratado de forma absolutamente brutal e desumana. Recentemente uma cena na novela "O Ouro Lado do Paraíso" causou nota de repúdio da Associação Brasileira de Psiquiatria pelo mesmo motivo.

Mas existe o outro lado. Alguns anos depois daquela primeira visita à psiquiatria ao som de Sinatra, lá estava eu novamente, já como médico residente. E uma das minhas primeiras pacientes era uma senhora portuguesa, com quase oitenta anos e uma depressão gravíssima. Doses altíssimas de medicação, ficava prostrada, gemendo o dia todo e dizendo "tô ruim, tô ruim", carregada no sotaque. O professor, meio a contragosto, decidiu: era caso de ECT. Levei pessoalmente a velha senhora para as sessões, que eram em dias alternados. Quando fui buscá-la para a terceira, tomei um susto. A mulher estava dançando um tipo de baião logo pela manhã, muito bem humorada, dizendo que estava ótima e queria ir para casa. Queria beber um bom vinho português, dizia. Foi de cair o queixo.

Assim como esse, vi muitos outros casos. Depressões graves, psicoses refratárias, catatonias e pasmem, gestantes! Sim, uma das principais indicações de ECT é justamente em gestantes, tendo em vista o risco de diversos medicamentos à saúde do feto. O problema é que o tratamento não é acessível para a maior parte da população. A ECT não é remunerada pelo SUS, num evidente caso de um viés ideológico se sobrepondo a uma questão técnica. Ou seja, os parcos serviços de ECT que o realizam o fazem de forma gratuita. Ou como serviço particular, que em geral é caro; não sai por menos de 600 reais a sessão e para se tratar um caso de depressão são necessárias ao menos 8 sessões, em geral mais. Os efeitos adversos são favoráveis: perda de memória e dor de cabeça, em geral relacionadas ao momento do procedimento.

Mas isso não diminui a importância do tratamento. Maldito e aviltado ele continua como uma esperança para milhares de pessoas. Algumas diretrizes, como as britânicas, colocam inclusive como uma possível primeira opção em casos graves. Por aqui continua como um tratamento de resgate, quando os outros não deram certo.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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