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Blog do Luiz Sperry

Nossa geração trocou o sonho de padaria pelo inhame. O que será de nós?

Luiz Sperry

15/09/2017 04h00

(Crédito: Joana Rocha)

Foram milhares de anos. Talvez milhões. Conforme fomos nos afastando dos nossos parentes primatas, até chegar nesse modelo atual, nosso corpo passou por uma série de mudanças. A primeira coisa que nos vem à cabeça é que passamos andar em duas pernas, ao contrário de nossos antepassados, que quando desceram das árvores, andavam de quatro. Assim podíamos usar nossas preciosas mãos para fazer uma série de coisas, certo? Certo, mas não foi só isso. Tão importante quanto isso, foi o fato de podermos também economizar uma quantidade imensa de energia. Assim, conseguíamos caminhar mais longe que os nossos rivais e buscar comida quando a coisa apertava.

Além disso fomos ficando, digamos, mais gordinhos. Um humano tem a capacidade de acumular muito mais gordura que um primata. Enquanto um humano adulto tem de 10 a 15% de gordura corporal (se você morar numa selva, claro), um outro primata não passa de 6%. Até mesmo os gorilas, aquilo ali é tudo músculo, pode apostar. E isso foi uma coisa boa, já que graças a esse pneuzinhos extras o Homo Sapiens conseguiu usar seu cérebro avantajado, que consome muito mais energia que o cérebro menor dos macacos e outros hominídeos.

Quero dizer com isso tudo que o ser humano passou por milhares de anos de evolução para se tornar mais gordo. Ser gordo era legal, era bonito, era cult. Porque não era para quem queria, era para quem podia. Comida era uma coisa meio regulada, mesmo para a classe média. Não precisamos voltar muito no tempo para lembrar que vinte ou trinta anos atrás a gente comia bem menos. Um lanche no McDonalds vinha com batata pequena, refrigerante pequeno e ninguém passava fome. Hoje em dia vem tudo maior e a moça ainda tenta te empurrar o combo gigante. Super Size Me.

A oferta de comida é muito maior e falamos muito mais de comida. Antes era só Palmirinha, Ofélia e sua Cozinha Maravilhosa, Sílvio Lancelotti e olhe lá. Hoje tem Ana Maria Braga, Master Chef, Hell's Kitchen, Carolina Ferraz, Bela Gil, Rita Lobo, o onipresente Rodrigo Hilbert (sempre ele) e muitos outros. Além claro, da Palmirinha, que ainda dá as caras por aí. Dia e noite expostos aos filés Wellington, chocolate belga, lagostas e macarrons.

Só que aí, justo quando a humanidade ia abraçar sua vocação pela gordice, quando íamos finalmente encontrar nosso destino, começou a pegar mal ser gordo. Todo mundo, há milhares de anos, caminhando num sentido, e de repente o pessoal grita: Volta! Agora o legal é a gente ter a gordura corporal…de um macaco.

Essas aberrações culturais acontecem porque nosso corpo é tomado por impulsos de necessidade e, ao mesmo tempo, é fonte de prazer. Tanto a comida quanto o sexo estão ligados tanto a impulsos de sobrevivência e procriação quanto a situações de prazer. Antigamente o esquema era comer para não morrer de fome, procriar o quanto conseguisse e fim. Não tinha vacina, antibiótico, nem água encanada, morria-se cedo. Agora na era da fartura a gente dura bem mais, mas esquece que nosso corpo não foi feito para isso. Continuamos programados para acumular gordura, como o Homem de Cro-Magnon (acho mais poético que H. Sapiens), há 40 mil anos.

Então eis que aquele prazer sexual, ligado a reprodução, o bom e velho sexo, o rala e rola, dá lugar ao prazer de ser magro. Em geral a gente malha, faz dieta e fica gostoso para conseguir atrair gente para ficar com a gente. Não se engane, não é pela saúde, não é para viver cem anos. É tudo pelo sexo. Só que a graça agora já não é ficar lindo para transar mais. As pessoas querem ficar lindas para serem reconhecidas como lindas pelo maior número de pessoas possível. É um comportamento histérico, sem dúvida. Hoje em dia dá pra seduzir em massa e não transar com ninguém. Porque parte da graça é mostrar como conseguimos nos mortificar e resistir às tentações. Numa época de fartura, pelo menos quantitativa, contar cada grão de quinoa, cada pé de alface, recusar sobremesa, sempre. Numa época de sedentarismo, se debulhar levantando peso, fazendo cross-fit e claro, escaladas, primatas que somos. O corpo, que era uma fonte de prazer, vira fonte de sofrimento atroz, em nome da hedionda "barriga negativa". Que serve para mostrar como você  é capaz de passar fome, praticamente um faquir, só que sem o lance espiritual.

Nesse contexto o gordo é o pervertido da vez, que não resiste às tentações e os prazeres da carne. A comida é o novo pornô. Legiões de zumbis, sempre de dieta, sempre acima do peso, sempre em dívida consigo mesmo. Tentando se convencer que o inhame substitui o sonho de padaria. Cruel.

E aí não dá para sair, porque comer engorda, festa vira um terror. Bar, balada, nem pensar. Você sabe quantas calorias tem num chopp? E o corpão todo trabalhado no spinning e na linhaça dourada não vai encontrar outros corpos. É como se o rabo agora abanasse o cachorro. Depois não adianta culpar o aplicativo.

Não estou dizendo que liberou geral, que pode comer tudo e ficar largado. A gente tem que comer bem e malhar porque nosso corpo foi feito para isso. E ficar lindo e transar um monte, claro. Se você pensar um pouco, não precisa sofrer tanto para se divertir. Por mais que você deseje um corpo igual da Gabriela Pugliesi, pense que isso dá um trabalho imenso. Ela por exemplo, vive disso. E o mais importante: você precisa?

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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