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Blog do Luiz Sperry

Por que o discurso de ódio dá tantos likes?

Luiz Sperry

23/08/2017 04h00

Crédito: Getty Images

A internet é um espaço de amor. Se prestarmos atenção, essa, que é a coisa mais revolucionária do século, serve principalmente para aproximar pessoas. E-mails, WhatsApp, Facebook, sem falar dos finados Orkut e MSN. Até mesmo os aplicativos de paquera e de sexo sem compromisso. Mas se tem uma coisa que me deixa com uma enorme pulga atrás da orelha é esse negócio da violência no mundo virtual. O que faz com que gente bacana, simpática e amorosa, entre nos espaços virtuais e se transforme em boçais irreconhecíveis?

Impossível não traçar um paralelo com o bom e velho desenho do Pateta motorista. Um clássico através das gerações, essa obra prima de Walt Disney foi produzida em 1950. O desenho começa com uma afirmação simpática: "o automóvel nas mãos do homem comum já está beirando as margens da extinção". E mostra como o Pateta se transforma num louco psicopata cada vez que entra no seu carro. Estaria a internet nas mãos do homem comum chegando ao mesmo fim?

Pensando nas causas desse fenômeno do século XXI, lembro de outra obra-prima do século XX. Em 1921 Freud escreveu a Psicologia das Massas e Análise do Eu. Ele conta que a cabeça das pessoas muda quando elas fazem parte de um grupo. Uma vez dentro da massa, o sujeito não responde mais como o faria fora dela. É como se sua capacidade racional estivesse parcialmente anestesiada, e as emoções afloradas. Basta pensar por exemplo num jogo de futebol. O sujeito vai ao estádio, tomado pelo espírito da massa, e logo começa a xingar sistematicamente o juiz, os jogadores adversários, os jogadores do próprio time, as famílias deles e assim por diante. Toda a educação e civilização ficam consequentemente do lado de fora. Leva para dentro, além do amor ao time, a violência, a homofobia e a intolerância.

Na internet acontece um processo semelhante. Assim como numa torcida organizada, vamos formando grupos com pessoas que tem alguma coisa a ver com a gente. Cerveja, Fora PT, cachorrinhos fofinhos, enfim, qualquer coisa. Esses bandos virtuais ficam de certa forma latentes até que as emoções começam a fluir e, de forma contagiante, viralizam. E até mesmo as pessoas fofinhas adoradoras de caninos fofinhos podem rapidamente pregar o linchamento e outras torturas caso algum idiota seja flagrado maltratando um animal. Como essas novas massas em geral se ligam a símbolos efêmeros, acabam por ser efêmeras também. Mas nem por isso são menos poderosas e frequentemente extravasam o ambiente virtual. É o que vemos quase toda semana nos últimos anos. Reparem só: black blocks, Fora Dilma, Fora Temer (em certo grau), gente agredida dentro de avião e dentro de hospital. Neonazistas na Europa, neonazistas em Charlottesville. E por aqui, Bolsonaro, o hater maior da nação, perigando ir para o segundo turno.

Talvez exista dentro da gente um demônio oculto. Um demônio que deseja nos levar para o abismo, nada menos que o aniquilamento total, que é a nossa própria morte. Porque afinal é só na morte que se encontra a paz absoluta. O resto é perrengue, sofrimento, incertezas e frustrações, enfim, a vida. A esse demônio, a esse lado negro da Força, a psicanálise chama pulsão de morte. Ela está dentro de nós sussurrando: "vem, meteoro!".

E nas redes sociais, nos grupos de WhatsApp, nas caixas de comentário de portal, os demônios se encontram. E saem juntos para fazer coisas, obviamente, demoníacas. A ideia é destruir geral. A inveja é um exemplo que a gente vê todo dia. Só botar um post falando mal do Alex Atala para você ver. Vai aparecer um monte de gente concordando e caindo de pau. Provavelmente a grande maioria nunca provou uma batata frita do restaurante dele, mas vai todo mundo ficar contente porque essa coisa de ter restaurante melhor do mundo, ainda mais nesse preço, aí já é demais. E o nosso demônio fica mais contente, porque se não tem chefe estrelado, se não tem polvo crocante, fica mais fácil segurar no arroz com feijão aqui de baixo.

Claro que o ódio e a violência sempre existiram, antes de Walt Disney, de Freud, desde que o mundo é mundo. Mas é inegável que isso tudo vem adquirindo uma nova face. Esse post já estava quase pronto quando vieram os atentados de Barcelona. Achei que precisava falar do Estado Islâmico, talvez a Pulsão de Morte na sua forma mais pura (na medida em que as pulsões podem se manifestar numa organização, mas isso é outra estória). A ideia é destruir tudo que é bonito, tudo que é alegre, tudo que é da civilização. Até a própria civilização islâmica o Estado Islâmico odeia. Sem falar que atiça os demônios xenófobos do outro lado, gerando uma reação em cadeia. Não é por acaso que isso acontece.

O recurso que a gente tem contra a pulsão de morte é justamente a civilização. É o que a gente constrói junto, é a Cultura, nas suas mais variadas formas. A nossa resistência nessa batalha épica é através do outro e dos laços que criamos. Só assim podemos conseguir botar o demônio na jaula. A saída é sempre o amor.

 

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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