Topo

Histórico

Categorias

Blog do Luiz Sperry

Qual o risco real da tecnologia?

Luiz Sperry

28/10/2019 04h00

Getty Images

Não é segredo que as novas mídias têm se tornado um problema para inúmeras pessoas. Como o seu impacto e disseminação é algo muito recente e intenso, temos uma certa dificuldade, na prática clínica e na análise técnica, de medir qual o tamanho do efeito desse impacto, tanto na nossa saúde quanto na nossa doença.

Recentemente, o vício em jogos eletrônicos foi considerado uma doença mental, obviamente nova, porque inclusive há poucas décadas não existia sequer videogame. De lá para cá os jogos se tornaram fabulosos e, com esse salto qualitativo, é cada vez mais provável que as pessoas passem muitas horas seguidas jogando. Nesse contexto, o que era para ser diversão, vira compulsão; é muito difícil parar. Eu mesmo evito, pois sou capaz de gastar um tempo imenso jogando e inclusive sofrer, quando fico longe por um tempo mais prolongado.

Outra faceta tecnológica importante são as mídias sociais, das quais não me canso de falar. Redes sociais, como Instagram, Facebook e Twitter, fazem parte do dia a dia de muita gente, sendo que em certos grupos, tomam um papel central das relações. Cansei de ver gente dizendo que "não tem como dar certo, ele demora muito para responder no Insta". Ou então, "ele curtiu fotos antigas dela, fotos antigas!". Sou obrigado a adentrar em um novo campo semiológico e a aprender que curtir fotos antigas é quase um equivalente a chamar pro rala-e-rola.

Sem contar no Homo Internéticus, aquele ser primitivo e brutal no qual certas pessoas se transformam quando entram nas redes sociais. Potencializados pelo efeito de psicologia de massa freudiano, o ego e suas capacidades racionais se esvaem e o sujeito se torna uma criatura absolutamente emocional e instável. Na citação de Freud: "todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre". 

Os outros dois Cavaleiros do Apocalipse da tecnologia são sem dúvida os serviços de entrega e os serviços de streaming, a combinação Netflix/iFood. Curioso pensar que os dois programas de maior sucesso dos últimos 100 anos, cinema e restaurante, tenham sido escanteados tão rapidamente. Na área de saúde mental isso se reflete inicialmente na forma de um profundo isolamento, as pessoas não saem mais de casa. Ao optar por assistir vídeos por streaming existe obviamente um certo estreitamento de repertório, já que uma série de coisas não está lá. Sim, também existe um aumento de oferta, já que existem várias coisas que de fato estão lá. Mas o mais grave é que abre uma porta para uma outra compulsão, de assistir séries em sequência (definidas pela expressão horrorosa "maratonar") num grande atoleiro de passividade. Isso tudo regado à comida gorda que vem na porta da tua casa, com consequências óbvias.

Mas apesar destas constatações, existem estudos bastante atuais que apontam num outro sentido. Num texto muito interessante chamado "As Mídias Sociais Não Destruíram Uma Geração", na Scientific American, Lydia Denworth mostra que talvez haja um exagero a respeito do potencial nocivo dessas novas mídias. A grande parte dos usuários dessas tecnologias não têm problemas decorrentes disso. Se por outro lado ela admite que o abuso desses hábitos está de fato ligado a problemas de saúde mental, é preciso considerar que há uma via de mão dupla.

Ou seja, sempre houve gente isolada, que come mal, que sofre de ansiedade e depressão. O fato dessas pessoas agora se refugiarem em redes sociais ou comerem hambúrguer 12 vezes por semana não estabeleceria necessariamente uma relação de causa e consequência. Pode até ser que tenha a ver, mas por enquanto nós não temos dados que demonstrem isso. A hipótese, formulada há alguns anos, de que dar um smartphone para uma criança seria potencialmente tão perigoso quanto dar cocaína (sim, isso foi dito) não se sustenta.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

Blog do Luiz Sperry