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Blog do Luiz Sperry

O que há por trás da "cura gay"

Luiz Sperry

19/09/2017 18h58

Talvez eu seja ingênuo, mas achei que esse papo de cura gay estivesse superado.  Até acordar e ver centenas de pessoas discutindo a liminar, absurda,  concedida por um juiz do DF em favor de uma ação popular movida contra uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, datada de 1999 que diz, entre outras coisas que "os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados".

A decisão não é um manifesto homofóbico como se poderia imaginar num primeiro momento. Entre outras coisas o juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho parte da premissa de que a homossexualidade não é doença, conforme posicionamento da OMS, que é consensual nos meios científicos. Posiciona-se contra o que seria uma suposta "cura gay", por equiparar a homossexualidade a outros transtornos mentais. Até aí tudo bem.

A partir daí a sentença  fica um pouco confusa, porque o juiz, apesar de dizer  que "a norma em questão, em linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição" diz também que ela não poderia impedir o psicólogos de atender quem os venha procurar de forma espontânea. E completa, dizendo que defere, parcialmente, a liminar, determinando que o CFP "não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem, de forma reservada, estudos ou atendimento pertinentes a (re) orientação sexual".

No final das contas a decisão é a seguinte: ela admite que homossexualidade não é doença, mantém a proibição de se propor o tratamento, mas permite que os psicólogos atendam os pacientes que os procurarem no sentido de mudar sua orientação sexual, em privado.

Essa decisão traz dois problemas graves ao meu modo de ver. O primeiro deles é de caráter científico. Porque sob a pretensa "liberdade científica" ela ignora o risco de agravamento dos quadros submetidos a esse tratamento, e há farta literatura nesse sentido. Além de não haver nenhuma evidência de sucesso, no sentido de tornar as pessoas heterossexuais.

O segundo, que considero mais significativo é de natureza política. Traçando um paralelo simples, seria o equivalente a permitir que os pessoas negras procurassem médicos dermatologistas para tratar sua negritude. Mesmo sem fazer propaganda, isso não seria eticamente aceitável, mesmo se as pessoas procurassem a "cura negra" espontaneamente. Inclusive porque homossexuais e pretos vivem nesse país (e em muitos outros também) em uma condição muito maior de vulnerabilidade social. Permitir que uma pessoa tente sair dessa condição, que existe em decorrência do preconceito e da repressão social, através de um suposto tratamento,  acaba por endossar e validar esse preconceito. Inclusive, pode reparar, as pessoas que defendem a cura gay são justamente as mesmas que fazem de tudo para tornar a vida dos gays um inferno, gente abjeta do nível de Pastor Feliciano e Silas Malafaia.

O leitor espírito de porco pode argumentar: mas então você é contra os trans mudarem de sexo? Claro que não. Mesmo indo de uma posição de menor vulnerabilidade social (cis) para uma de maior (trans) eles melhoram. Contra todo o preconceito.

Por isso que classifiquei como absurda a decisão do juiz lá no começo do post. Ela abre uma brecha para a intolerância e para o fanatismo religioso, que nada mais quer do que acabar com as liberdades que a decisão julga proteger.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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