Você sabe o que é campo vivencial? Saiba como ele interfere na saúde mental
Luiz Sperry
27/07/2020 04h00
Crédito: iStock
A prática da psiquiatria, assim como das outras áreas de saúde mental, dispõe de algumas peculiaridades em relação às outras áreas da saúde. Por um lado, nosso arsenal investigativo é bastante limitado, tendo em vista que grande parte dos exames subsidiários utilizados pela medicina nos é totalmente inútil. Os pacientes mais afoitos muitas vezes questionam se não é necessário algum exame para a confirmação do diagnóstico, e a resposta quase sempre é negativa. Por outro lado, nós dispomos de algumas habilidades que são únicas entre todas as áreas, e é principalmente nelas que nos baseamos para fazer os nossos diagnósticos.
Numa consulta médica comum, um médico vai basear seu diagnóstico numa entrevista e esses dados serão associados a um exame físico, que o levarão a algumas hipóteses e, consequentemente, ao tratamento. Em psiquiatria fazemos algo semelhante: existe uma história, o exame físico é bem menos importante (mas não de todo desnecessário) e temos também o famoso exame psíquico. O exame psíquico é um tipo de avaliação das capacidades emocionais da pessoa, baseado em dados sutis, como: o jeito que ela fala, o assunto que ela fala, as emoções que transparecem e assim por diante.
Através do exame psíquico podemos avaliar uma série de características muito importantes, como por exemplo o humor, a ansiedade, o pensamento ou a capacidade de julgamento. No entanto existe um item do exame psíquico que é bastante peculiar. Digo peculiar porque não está em todos os livros de psicopatologia, e mesmo quando fazemos uma pesquisa sobre o assunto, pouca coisa é dita sobre ele. Esse item obscuro do nosso psiquismo é o que chamamos de campo vivencial.
Não sei quem desenvolveu o conceito de campo vivencial, mas seu grande difusor no nosso meio foi o professor Carol Sonenreich. Nascido e formado na Romênia, veio ao Brasil nos anos 1960 e por aqui ficou, tendo sido o principal nome do serviço de psiquiatria do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, onde formou uma escola única no pensamento de psiquiatria e psicopatologia. Entre suas diversas contribuições, uma das mais importantes é a luz que ele lança sobre o tal campo vivencial.
O que vem a ser isso? Podemos descrever como o espaço onde nosso psiquismo atua. Se você já tentou meditar alguma vez deve ter percebido que nossa cabeça é uma fonte inesgotável de pensamentos, da mesma maneira que aquele vulcão Kilauea do Havaí, que há décadas não para de despejar lava montanha abaixo, nossa mente não para de despejar pensamentos e emoções para todos os lados. Acontece que não é todo mundo que pensa igual. E ainda mais, as doenças mentais podem mudar os nossos pensamentos.
Algumas doenças fazem com que percamos o interesse nas coisas, como a depressão ou a doença de Alzheimer. Nesse caso podemos dizer que o campo vivencial se estreitou, porque a quantidade de coisas que fazem parte da nossa vida mental diminuiu, assim como a intensidade com que nos ligamos a elas. Num quadro de ansiedade também isso pode ser observado, com nossos pensamentos e emoções se ligando fortemente a assuntos em geral desimportantes (Vai chover? Será que vai ter trânsito? E se eu esquecer o horário?). Em geral estados patológicos levam a um estreitamento do campo vivencial.
O que não nos permite concluir que "quanto mais campo vivencial melhor". Porque o melhor exemplo de campo vivencial expandido é certamente o estado maníaco bipolar. O bipolar se interessa por tudo, com grande intensidade, ele quer estar em todos os lugares em todos os tempos. Isso é muito grave porque afasta a pessoa da realidade, podendo em muitos casos ser fatal. Veja o caso do rapper Kayne West, que dizem que é bipolar. Na mesma semana lançou um disco novo, brigou com meio mundo (mulher e família inclusive), virou candidato a presidência dos EUA e botou parte da sua credibilidade em risco. Não sei se ele está em crise maníaca, mas o campo vivencial parece estar explodindo de tão grande, e isso é um grande problema.
Existem também aquelas pessoas que são adoradoras do utilitarismo e funcionam de uma maneira que lembra um estado maníaco, mas é artificial. Elas tem que aproveitar tudo, tem que viajar, fazer churrasco, estar em todos os lugares, tirar fotos em todos os lugares. Mas nesse caso o funcionamento em geral é neurótico, porque elas são compelidas na verdade por um sentimento de culpa que diz: "você está perdendo algo importante".
Isso talvez seja uma reação, porque nosso estilo de vida atual nos compele para uma rotina de duas notas que são: trabalho/consumo. Se você trabalha e consome você só faz duas coisas da sua vida, logo seu campo vivencial muito provavelmente é estreito. Com a quarentena a tendência é que ele tenha piorado, virando algo como: tarefas domésticas/consumo (menos). Ou home office/noticiário covid-19. E aí a gente pergunta se esse campo vivencial reduzido é consequência dos problemas mentais ou se ele não é a própria causa da perturbação.
Não sei ao certo, mas parece que temos que esticar isso aí. A duras penas, como todo alongamento, temos que fazer com que nossa mente ocupe, ou reocupe, terrenos que são nossos por desejo e por direito. A gente quer estar com as pessoas, com a nossa família, sentar na calçada e ver a Banda de Ipanema.
Sobre o autor
Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.
Sobre o blog
Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.