Tudo bem desejar a morte de alguém? Psicologia explica esse sentimento
Universa
13/07/2020 04h00
Crédito: iStock
Às vezes a gente não quer falar de um assunto, porque a discussão vai se tornar algo estéril, onde as pessoas vão entrar já com uma opinião formada e haverá muito pouco espaço para a reflexão. As discussões políticas atuais, por exemplo, passam quase todas por este caminho, não havendo espaço para concessão de nenhum dos lados. Mas eis então que surge um assunto que diz respeito a todos nós, que é essa coisa da vida e da morte. Mais especificamente sobre o desejo de morte.
O fato que deu origem à discussão dessa vez foi o anúncio pelo presidente de que estava com o novo coronavírus. Imediatamente começaram as manifestações públicas, que foram sintetizadas de uma forma talvez espalhafatosa, pelo colunista Hélio Schwartsman, na Folha dessa semana. Ele fala entre outras coisas que, se Bolsonaro é responsável, pela sua negligência, pela morte de dezenas de milhares de pessoas, seria ético torcer para que ele morresse, pois isso seria evitar, teoricamente, um número de mortes muito maior.
Imediatamente pegou-se fogo no parquinho. A ombudsman Flavia Lima fez uma consideração interessante nesse domingo sobre o assunto. Alguns ficaram ultrajados e denunciaram "o falso moralismo esquerdista, que só vale para os outros". Outros cobraram empatia "mesmo com aquele que nunca a demonstrou". É o jogo da direita!", dizem uns. "Não, é o jogo da esquerda", dizem outros. Acusações e dedos em riste para tudo que é lado. Alguns ainda proclamaram: "falhamos como civilização". Uma única nota destoou e chamou minha atenção: "O desejo é livre".
Sim, porque é importante que essa discussão se dê em dois níveis. O primeiro é justamente esse, o nível do desejo. Todo sujeito é um grande balaio de desejos, de todos os tipos: desejo de ter algo, desejo de ter alguém, desejo de ser alguém e porque não desejo de matar alguém, ou de que alguém morra sem nem mesmo a gente ter que se esforçar para isso. Isso não é algo que esteja presente em algumas pessoas, isso está presente em todas as pessoas. E digo mais, desde a mais tenra infância. Quer ver? Alguns relatos verídicos.
Criança Fofinha Um, sobre o priminho recém-nascido que chegara em visita:
– Mamãe, posso arrancar os braços e as pernas dele e jogar pela janela?
Ou a Criança Fofinha Dois, para a mãe:
– Então eu posso matar o papai, casar com você e gente vai ter quarenta filhos!
A nossa sorte é que as crianças pequenas em geral não fazem essas coisas, mas o desejo está ali. O desejo de matar o priminho, matar o pai, casar com a mãe. Claro que as crianças também amam o pai, os primos e até abrem mão de casar com a mãe, de modo que esses sentimentos meio que se ajustam ao longo do nosso desenvolvimento. A gente vai aprendendo que não é muito legal pensar desse jeito e os sentimentos mais hostis (mas também parte dos sexuais e amorosos) vão sendo empurrados para uma zona de esquecimento em nossa mente, num processo que chamamos na psicologia de "recalque".
Os desejos recalcados não deixam de existir, eles continuam lá, na região que chamamos de inconsciente, e podem ser acessados novamente, mesmo depois de muito tempo. É como arquivos de computador que você tirou da sua tela inicial, mas continuam guardados em algum subdiretório menos à vista. Um exemplo prático disso é que nós, quando em reunião com velhos conhecidos, conseguimos lembrar de fatos, às vezes de longas histórias das quais havíamos nos esquecido completamente e mesmo nos impressionamos por ainda lembrar de tanto.
O desejo de matar persiste nos adultos, em geral não mais em relação aos pais, mas deslocado em relação a diversas outras pessoas. Ao chefe, às pessoas no trânsito, no teleatendimento, às celebridades, às subcelebridades de internet, à polícia e aos bandidos. Quem não lembra do governador Witzel comemorando com soco no ar a morte de um sequestrador na ponte Rio-Niterói? Inclusive se formos ver, desejamos muitas vezes a nossa própria morte. Quando conseguimos nos dar conta do desejo, ele simplesmente já está lá, já foi desejado, escapa do nosso controle.
Ou seja, se a gente deseja matar pai, matar mãe, matar nós mesmos, por que não pode desejar a morte de Bolsonaro? Claro que pode, está liberado. "Ah Luiz, mas então pode desejar a morte do Lula também!". Pode sim, do Lula, da Dilma, a minha, de quem você quiser. O desejo é livre.
Mas existe um segundo ponto a ser tratado, que é uma questão de algo chamado de pacto civilizatório. Para que possa haver uma convivência diferente da guerra, é necessário que as pessoas sigam determinada ética, determinado comportamento. E pela ética vigente não é adequado que a gente saia falando quem a gente quer que morra. Inclusive porque estamos no meio da maior pandemia do século, rumo aos cem mil mortos só aqui no Brasil. É extremamente insensível e ofensivo com todas as famílias em luto, com um planeta em luto, ficar replicando hashtags #ForçaCovid ou se manifestar pela morte de quem quer que seja. O momento não permite esse tipo de gracejo.
Sobre o autor
Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.
Sobre o blog
Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.