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Coronavírus pode se tornar uma endemia: como lidar com a mudança

Luiz Sperry

18/05/2020 04h00

Crédito: iStock

Agora já são dois meses, lembra quando no começo a gente achou que seriam quinze dias? Pois é, não foi assim. Esses dias uma amiga me marcou numa postagem onde eu afirmava, categoricamente, que esse estrupício de isolamento duraria "mais 4-6 semanas". Pois é, já foram mais seis e não há luz no fim do túnel. Isso nos leva a novas questões e a novos desafios que são: e se não acabar? E se acabar, como que saímos disso?

Existe uma chance razoável dessa epidemia se tornar uma endemia. Qual a diferença entre uma coisa e outra? Funciona assim, quando uma determinada doença aumenta muito em uma determinada região, temos uma epidemia. É o caso da infecção por coronavírus atualmente. Já uma endemia é uma situação onde a doença é comumente encontrada em uma região. Por exemplo, gripe/influenza, dengue e AIDS são doenças endêmicas do Brasil; febre amarela é endêmica em determinadas regiões.

Caso nós não tenhamos um tratamento ou uma vacina eficazes contra o coronavírus, não é de todo improvável que o vírus não chegue a ser totalmente erradicado em nosso meio. Se por um lado existe a tendência de que mais pessoas tenham a doença e adquiram algum tipo de imunidade, existe também a possibilidade do vírus sofrer uma mutação e de alguma maneira driblar nosso sistema imune.

Ou seja, pode ser que não haja aquele dia no qual seja decretado o fim da epidemia e a gente saia na rua se abraçando para comemorar. As máscaras e as medidas sanitárias parecem que vão permanecer por mais tempo do que nós imaginávamos. E quanto mais tempo a gente permanecer com essas restrições, mais profundas vão ser as marcas que vão ficar no nosso funcionamento emocional.

Na Europa já se vêem alguns sinais dessa nova realidade. Na Espanha, por exemplo, o processo lá chamado de desescalada, inclui restaurantes abrindo com 50% da lotação, salões de beleza com rígidos processos de higiene e festas proibidas. Se há uma denúncia e polícia vai lá e acaba com a resenha. E isso apenas porque os casos e mortes estão em queda há mais de mês.

Uma das questões mais importantes que aparecem nessa coisa do desconfinamento é como lidar com o outro. Temos a tendência de, quando doentes, permanecer em algum grau de isolamento social. Isso é instintivo, embora hajam alguns indícios de que possa haver uma interação entre interleucinas inflamatórias e comportamento. Assim como temos também a reação de nos afastar daqueles que acreditamos estar doentes.

O desfecho disso é que numa epidemia (ou endemia) onde há uma doença potencialmente contagiosa e fatal, o outro sempre pode ser visto como o contagioso. Na verdade já começou entre nós: profissionais de saúde sendo agredidos em locais públicos, gente se estapeando por causa de uso de máscara, até tiroteio com morte houve recentemente por causa de um senhor que se recusava a usar uma máscara conforme o orientado.

Isso pode nos levar, de uma maneira insidiosa, a uma situação de paranoia social, em que o medo que sentimos do outro pode dar vazão a outros comportamentos agressivos. Acha exagerado? Num trabalho canadense de 2004, pessoas que se assistiram vídeos sobre doenças infecciosas tiveram seus sentimentos xenofóbicos aumentados em relação a pessoas que não foram influenciadas pelas mesmas informações.

Imagine a gente, que está há meses ligado dia e noite com esse assunto onipresente. O quanto isso pode nos influenciar negativamente, no sentido de nos tornar mais avesso ao contato com as pessoas? É tudo que a gente não precisava, definitivamente.

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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