Psicopatas vivem bem com sua condição e muitos não são diagnosticados
Luiz Sperry
25/11/2019 04h00
Crédito: iStock
Entre as questões psicopatológicas todas que aparecem na mídia, talvez a mais emblemática seja a dos chamados psicopatas. Ao lado do fogo pirotécnico das psicoses e da estranha normalidade dos neuróticos, os psicopatas conseguem assustar e encantar ao mesmo tempo.
O termo psicopata é altamente impreciso. Em tradução literal significa "doente mental", o que não nos leva a lugar nenhum. Por isso inclusive o termo foi abandonado há um bom tempo pela comunidade científica, e chamamos a esse quadro Transtorno de Personalidade Antissocial. Mas sem dúvida permaneceu no imaginário popular. Quem não se lembra da célebre acusação: "Você é uma pessoa horrível, mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia", proferida recentemente em sessão do STF? Quando alguém, como nesse caso, fala em psicopatia, em geral está fazendo um juízo de valor sobre o outro. Está conferindo ao outro um traço de maldade.
Maldade e bondade são conceitos que dependem muito do ponto de vista das pessoas, de modo que são parâmetros frágeis quando se quer fazer uma análise mais técnica sobre a personalidade de alguém. É mais interessante se a gente observar como a personalidade das pessoas se forma.
No início somos todos bebês. Nossa noção sobre o que somos nós e sobre o que é o outro é bastante grosseira. Aos poucos vamos aprendendo o espaço que cada um ocupa no grupo e o que a gente pode e não pode fazer. O conceito de certo e errado vai se construindo junto com a capacidade de empatia, a compreensão do sentimento do outro. O que em última instância é uma forma de ligação amorosa entre as pessoas. E não só entre pessoas. Temos a capacidade de nos comover com a morte de um animal, de uma árvore ou mesmo com a demolição de uma casa que represente algo para nós.
As regras da convivência social são desenvolvidas de modo a compor um código ético que está desde cedo arraigado dentro de nós. Mesmo que ninguém nos repreenda, ficamos muitas vezes culpados somente por imaginarmos a possibilidade de transgredir as regras estabelecidas. Claro que se formos pegos em alguma situação flagrante os sentimentos de culpa ou vergonha se tornam ainda mais intensos e angustiantes.
Essas duas capacidades estão prejudicadas nos psicopatas. O psicopata não quer saber do sofrimento alheio, não se compadece com problemas que não sejam seus. Não está nem aí para gente em situação de rua, queimada na Amazônia, tartaruga engasgada com petróleo ou criança que morre de bala perdida. Em geral são pessoas muito autocentradas nas suas próprias questões e nos seus próprios problemas. Os sentimentos dos outros, quando são percebidos, não se tornam motivo de angústia, mas muitas vezes motivo de prazer. Gostam de assistir gente perdendo a prova do Enem como um gato brincando com um inseto antes de matá-lo.
Ao mesmo tempo, as regras sociais não constituem um obstáculo à realização dos seus desejos. Ao contrário dos psicóticos, que eventualmente podem quebrar alguma regra por conta da distorção da realidade, e por consequência da própria regra, o psicopata sabe exatamente o que é certo e o que é errado. Mas aquele freio interno que nós temos que nos causa angústia quando andamos fora da linha não funciona para eles. O limite é dado pela contenção externa, pelo medo de ser preso ou se dar mal, mas não por uma questão moral. Daí a necessidade frequente do uso de força contra essas pessoas.
Como nós somos todos neuróticos, via de regra, ficamos assombrados com esse funcionamento tão pouco usual. Pois o que nós temos de sobra é justamente capacidade de empatia e desejo de adequação social. E é justamente daí que surge esse grande fascínio que os psicopatas exercem sobre nós: eles estão livres das amarras que nós identificamos como fraquezas e que nos fazem sofrer. Eles vão a lugares que nós nem nos permitimos pensar em ir.
Mas é claro que esse desejo é ambivalente. Ao mesmo tempo nós nutrimos uma ojeriza quase que orgânica ao comportamento perverso do psicopata, ele é socialmente inaceitável. Precisamos ter certeza que ele perde para inclusive justificar a nossa renúncia a tantas coisas em benefício da convivência e do bem-estar comum. Mas daí pode-se notar que o que dá limite ao psicopata é o meio, e não o sofrimento pessoal. O psicopata não tem angústia. Quer dizer, se a mulher o deixar, se for demitido ou assaltado vai ficar na pior, como todos nós ficaríamos. O que eu quero dizer é que ele não se angustia por ser psicopata.
Por conta disso eles quase nunca procuram o psiquiatra. Em geral são trazidos porque estão causando algum transtorno ao seu redor, sendo obviamente o caso mais comum quando cometem algum crime. Mas essa é uma minoria. A maior parte deles está por aí, vivendo muito bem. Como eles não têm pudores em passar a perna nos outros e levar vantagem, vão galgando rapidamente cargos de chefia. Estudos mostram que a presença de psicopatas em cargos de chefia pode ser até vinte vezes maior que na população geral. Sorte nossa que é um evento raro, em geral acomete apenas 1% da população geral.
Sobre o autor
Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.
Sobre o blog
Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.