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As dificuldades de cada geração

Luiz Sperry

26/08/2019 04h00

Não é de hoje que existe uma nova onda na psiquiatria. Existe uma quantidade assustadora de quadros graves, particularmente em pacientes jovens. E esses quadros por sua vez apresentam um funcionamento diferente do que seria o esperado. É como se essa atual geração pós-millenial, com todas as suas particularidades, também adoecesse de uma maneira igualmente peculiar.

Temos historicamente descrições de transtornos psíquicos muito antigas,  que ainda hoje podemos correlacionar com doenças atuais. No Papiro de Kahun, de 1900 a. C., os egípcios descreviam supostos casos de histeria e mais ainda: correlacionavam os sintomas a um suposto deslocamento do útero. Hoje sabemos que essa concepção está errada, mas ela perdurou por 3.900 anos até que pudesse ser refutada.

Mas o importante é que quadros atuais, como psicoses, depressões e histerias já estavam presentes na humanidade há milênios. Por outro lado, cada época acaba por propiciar, por questões culturais e ambientais, que uma doença se torne mais frequente enquanto outra se torna mais rara. Por exemplo, a própria histeria, que era muito frequente há pouco mais de um século, hoje em dia não se vê com tanta facilidade. Por outro lado, aquilo que hoje chamamos de Transtorno do Pânico vem se tornando mais e mais comum a cada ano.

Voltemos então aos pós-millenials, também chamados de Geração Z, que são basicamente pessoas nascidas entre 1995 e 2005. Os estudos demonstram que eles em geral têm mais problemas  de saúde mental que as outras gerações anteriores tiveram. São mais depressivos, ansiosos e insatisfeitos de uma maneira geral. Em alguns grupos a automutilação chega a níveis epidêmicos. E isso fica mais enigmático se a gente considerar que,  ao mesmo tempo, essa geração bebe menos, fuma menos e se droga menos que as gerações anteriores.

Não é preciso ser muito criativo para perceber que existe aí uma questão desadaptativa desse grupo. As condições no meio levam a uma mudança nos indivíduos, que em princípio, não estão adaptados para aquela determinada mudança. Mais um exemplo banal. Com os frequentes períodos glaciais e de aquecimento global, os humanos acabavam por migrar para o norte e para o sul, com o objetivo de fugir das temperaturas extremas, conforme migravam para o norte, a pele negra passava a ser uma desadaptação à nova realidade, pois atrapalhava a síntese de vitamina D e reduzia a fertilidade do grupo. Conforme migravam para o sul, passava a ser uma vantagem por proteger melhor do sol que a pele branca.

Mas isso é uma característica física que acabava por ser selecionada naturalmente ao longo de várias gerações. Como pode um grupo sofrer um processo desadaptativo de uma geração para a outra? Lembrei então de um livro chamado Geschichte eines Deutschen (História de um Alemão, sem tradução para o português), de Sebastian Haffner. Ele conta sua própria história, até fugir da Alemanha nazista nos anos 30. É muito interessante a descrição que faz da ascensão do Nacional-Socialismo, principalmente da adesão dos liberais ao movimento em nome do anticomunismo. Ele usa uma frase que diz que "nós somos formados como perfeitos cidadãos para uma época que já passou". No caso dele, todos seus conhecimentos de um jovem burguês prussiano do início do século e sua formação como advogado pouco valor tinham frente aos horrores da guerra que se iniciava. 

Ou seja, a adaptação é muito mais cultural que biológica. Somos formados para uma época que passou. Eu mesmo, passei uma boa parte da minha infância treinando a minha letra em cadernos de caligrafia. Datilografia era um conhecimento específico. Pois bem, sou hoje essa criatura semi-adaptada. Se por um lado não passo a vergonha de certos colegas médicos com seus famigerados garranchos ilegíveis ( e a minha letra só foi considerada bonita umas duas ou três vezes na última década, por pacientes evidentemente perturbados), por outro digito com dois dedos de maneira bastante sofrível. Esse post, por exemplo, levou um tempo imenso para ser digitado, acredite você.

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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