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Comunidades terapêuticas podem ser perigosas e não trazer resultados

Luiz Sperry

15/04/2019 04h00

Crédito: iStock

Tenho utilizado este espaço com alguma frequência para comentar as mudanças nas políticas de saúde mental que vêm ocorrendo nos últimos anos. Na contramão de parte dos meus colegas, elogiei a reestruturação das unidades de internação psiquiátrica, como elemento necessário ao atendimento clínico. Também defendi a regulamentação da eletroconvulsoterapia (ECT), elemento ainda hoje imprescindível quando se pretende oferecer um serviço de excelência da população. Um elemento porém nas novas diretrizes me deixou com uma pulga atrás da orelha, que foi a questão das comunidades terapêuticas. E o tempo vem provando que infelizmente eu tinha razão.

O governo está anunciando uma mudança na política de combate às drogas. Supostamente o governo estaria baseando sua política de tratamento da dependência química na proposta de redução de danos. Isso é uma meia verdade, já que a implementação de políticas de saúde se faz geralmente em nível municipal, levando a uma série de medidas efetivas bastante variadas. O secretário Nacional do Cuidado e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, Quirino Cordeiro Junior diz que essas medidas não vêm apresentando resultados: "Veja o número de pessoas dependentes".

E até aí tudo bem. Existe, em relação ao tratamento das dependências químicas, uma certa disputa entre aqueles que defendem um maior rigor em relação ao uso de substâncias, que seriam os defensores da abstinência total, e entre aqueles que defendem a chamada redução de danos, que acreditam na possibilidade do paciente ainda usar eventualmente. Não existe nada em literatura médica que comprove que um método seja melhor do que o outro; cada um tem suas vantagens e desvantagens.

O problema é que o governo está propondo a expansão do seu convênio com as tais comunidades terapêuticas. E o que seriam as comunidades terapêuticas? O conceito de comunidade terapêutica surgiu na Inglaterra, nos anos 50. Idealizado pelo psiquiatra Maxwell Jones, era, e ainda é, um conceito extremamente revolucionário. Era um momento onde as instituições psiquiátricas faziam valer a alcunha de manicômios. Eram locais fundamentados em regulamentos rígidos e hierarquizados, cuja finalidade principal era justamente segregar o doente da sociedade. A comunidade terapêutica começou a dar voz aos próprios doentes e aos outros profissionais do serviço, promovendo uma democratização imensa no tratamento clínico. A proposta deixa de ser segregar e passa a ser reintegrar a doente na sociedade.

Pois bem, décadas se passaram, diversos projetos de comunidade terapêutica se espalharam pelo mundo, inclusive aqui no Brasil. Mas o que temos aqui que se denomina "comunidade terapêutica" (CT) não tem nada a ver com aquela comunidade terapêutica democrática. São basicamente pequenas unidades de internação, quase sempre em ambiente rural ou afastadas dos grandes centros. Muitas vezes ligadas a grupos religiosos, são focadas principalmente no tratamento de dependência química. Apesar de serem particulares, muitas vezes estabelecem convênios com o estado e recebem repasses de dinheiro público. Nesse ambiente muitas vezes se repetem os mesmos vícios das antigas instituições psiquiátricas.

O que me chama a atenção é que a regulamentação das CTs prevê que os pacientes se internem lá apenas em caráter voluntário. Ou seja, o dependente não pode ser internado em CT sem o seu próprio consentimento. E ele pode sair quando bem entender. E não pode ficar, em hipótese alguma, sem comunicação com a família. Ressalto esses pontos porque atendo todo dia gente que ficou internada nessas unidades e é muito comum ver gente dizer que foi internado involuntariamente nessas comunidades. Vejo muitas pessoas reclamarem que ficaram dias -eventualmente semanas- sem poder falar com as famílias. Ficaram sem assistência médica. Sem plano de tratamento. Dizendo que foram agredidas ou castigadas de formas absolutamente desumanas.

Não seria exagero afirmar que são pequenos manicômios funcionando sob o radar. Sem dizer que os pacientes não são tratados de fato. Saem da internação sem um mísero encaminhamento para continuar se cuidando. Obviamente recaem na primeira oportunidade e a clínica sugere outra internação. Importante ressaltar que a comunidade terapêutica não precisa ter necessariamente um médico responsável. Cada CT deve "manter uma equipe multidisciplinar com ao menos dois profissionais de diferentes graduações em ciências humanas ou de saúde, com experiência profissional comprovada na área de dependência química". E mais, não há limite de pacientes. Não fossem entidades sem fins lucrativos seriam uma indústria altamente rentável.

A legislação existe e é bem clara. Falta fiscalização, que cabe ao Ministério Público e outros órgãos competentes. E também à sociedade como um todo. Enquanto muita gente se esgoela contra os hospitais psiquiátricos, as "comunidades terapêuticas" silenciosamente vão se instalando insidiosamente. E ninguém dá um pio.

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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