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O que há por trás da polêmica do rosa e do azul

Luiz Sperry

07/01/2019 04h00

Crédito: iStock

Às vezes alguns assuntos se tornam tão pertinentes que acabo sendo meio que obrigado a escrever sobre eles. Foi assim nessa semana, com o pronunciamento desastroso da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A ministra afirmou que "é uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa". Pessoalmente, fico meio desmotivado de entrar em debates tão rasos e regredidos, mas por outro lado alguns esclarecimentos são necessários. Vamos a eles.

Em primeiro lugar, é preciso que se esclareça que a questão da cor não é central. Como foi explicado lindamente pela Lia Bock em Como o rosa se tornou a cor símbolo das mulheres, esse uso simbólico do rosa é bastante recente, data dos anos 50 do século passado. Foi uma moda lançada pela primeira-dama americana na época, Mamie Eisenhower. A indústria têxtil embarcou na onda e a moda persistiu até hoje. Ou seja, quando os meus pais nasceram ainda não tinha essa obsessão pelo rosa e pelo azul.

Por outro lado, as cores tem um valor simbólico. Ou seja, elas representam outras coisas. Secretária da Família no ministério de Damares, Angela Gandra Martins foi mais clara que sua superiora. "O que ela quer dizer é que a gente vai procurar acentuar o que é próprio de cada um. A gente não vai construir uma outra identidade esquizofrênica dentro dela, vai respeitar o que é natural naquele ser humano", disse.

Essa fala é importante porque traz alguns elementos preciosos à discussão. Fora o uso incorreto do termo esquizofrênico, talvez metafórico, a fala da secretária traz a expressão "natural". Esse é um conceito extremamente perigoso quando tratamos da construção do psiquismo das pessoas, incluído aí a questão do gênero. Tem pouquíssima coisa na nossa constituição a que se possa atribuir o epíteto natural. Somos seres eminentemente culturais. Nossa constituição é construída desde a mais tenra infância de acordo com os valores culturais que nos cercam. A hora de dormir, a hora de acordar, o jeito de se relacionar com os pais e adultos mais velhos. O jeito de comer, o jeito de brincar, tudo isso é derivado da cultura que se apresenta a nós. Assim como o que se espera de um homem e de uma mulher.

O que se espera de meninos e meninas é sim um papel tradicionalmente pré-determinado pela sociedade. Espera-se que meninas tenham certos gostos no vestir e no brincar que estão relacionados previamente ao que se espera delas como mulheres adultas, assim como em relação aos meninos. Ao dizer: meninas vestem rosa, implica-se aí também que meninas brincam com bonecas, e isso se desdobra em se esperar que essas mesmas meninas, ao se tornar mulheres se responsabilizem pelos filhos e não por sua carreira profissional. O que vai gerar toda uma geração de mulheres que não têm condição de paridade com os seus cônjuges, dos quais elas se tornam dependentes.

Dos meninos espera-se desempenho físico e esportivo, coragem e desempenho acadêmico. Interessar-se por coisas do feminino não é bem visto. Lembro bem quando era criança e pedi ao meu pai que me inscrevesse numa aula de esgrima que tinha aberto na região. Meu pai, homem de muitas ciências, psicanalista eminente, achou melhor não, pois era um esporte muito afeminado (até hoje alguns amigos troçam maldosamente: e adiantou?).

Volto então à primeira parte da frase da secretária. "A gente vai acentuar o que é próprio de cada um". E o único jeito da gente saber o que é próprio de cada um é perguntando para as pessoas, inclusive aí as crianças, o que é esse cada um. O que há no mundo hoje é justamente pai e mãe entuchando rosa e azul nas crianças, assim como carrinhos nos meninos e bonecas nas meninas. Mudou bastante, principalmente para as mulheres, que ocupam cada vez mais espaços que antes eram exclusivos dos homens.

Os homens por sua vez, encontram enorme dificuldade de dividir seus espaços e têm acabado cada vez mais encurralados em nichos e guetos. Na maior parte dos lugares é bastante comum ver as meninas jogando futebol, mas não me ocorre ver meninos brincando com bonecas ou mimetizando situações domésticas. Claro que isso vai levar a deficiências de formação num mundo onde a paternidade é cada vez mais demandada.

No meu lugar, nem tanto de psiquiatra, mas principalmente de psicanalista e psicoterapeuta, tenho a obrigação de ajudar as pessoas a terem uma postura libertária em relação aos papéis que a sociedade lhes impõe. E quanto a isso digo que o maior impedimento não são as regras e proibições que se impõe a nós adultos. Sabemos descumprir as regras de modo incrivelmente eficaz. As grandes amarras que impedem que nos tornemos nós mesmos são justamente aquelas que nos foram apresentadas na infância e que tomamos como nossas. E hoje em dia acreditamos que sejam "naturais".

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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