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O que é autismo? Entenda a classificação atual do quadro

Luiz Sperry

10/12/2018 04h00

Crédito: iStock

Existem nas diversas áreas da ciência alguns assuntos que são particularmente insondáveis. Na linguística por exemplo, existe a grande questão de como a língua basca foi parar ali aos pés dos Pirineus, sem ter a mais remota conexão com todas as outras línguas que a cercam por milhares de quilômetros. Na zoologia é de se imaginar que estranho ramo evolutivo levou aos curiosos ornitorrincos, mamíferos com bico de pato que botam ovos. Na psiquiatria sem dúvida a questão mais estranha é o autismo.

É provavelmente o quadro mais paradigmático da psiquiatria infantil. Apesar de não caber no modelo psicopatológico psiquiátrico e nem no modelo psicanalítico por bem dizer, são casos que se impõe pela sua apresentação, muitas vezes dramática. É tão complicado de se classificar que recentemente o diagnóstico de autismo passou por uma modificação bastante significativa. Os diagnósticos que anteriormente chamávamos de transtorno invasivo do desenvolvimento, que incluia o autismo e outros quadros semelhantes, deu lugar ao transtornos do espectro autista (TEA).

Nesse novo quadro, são fundamentais dois tipos de sintomas. Primeiramente uma dificuldade de sociabilidade e/ou comunicação –hoje isso não é mais critério definidor, mas é muito comum alteração de linguagem ou atraso do desenvolvimento de fala. Em segundo lugar, sintomas de padrões de comportamento ou movimentos repetitivos, como estereotipias (que são movimentos repetitivos do tronco ou das mãos, por exemplo) ou ecolalia (que são sons repetidos, como um eco); há apego despropositado a certos objetos ou assuntosNesse momento você pode questionar: mas não é comum uma criança pequena se apegar a certos objetos ou temas? Sim, mas as crianças em geral se apegam a objetos ou assuntos e os investem de afetos. Por exemplo, um bicho de pelúcia ou um travesseiro especial normalmente vem com um nome, uma história e diversos outros elementos criados pela poderosa máquina imaginativa das crianças. Uma criança autista apegada a um objeto qualquer não tem essa capacidade de estabelecer esse tipo de brincadeira criativa.

Com essa mudança, o diagnóstico de autismo passou a incluir casos mais leves, que anteriormente não cogitaríamos classificar como autismo ou espectro autista. Indivíduos com uma capacidade de sociabilização prejudicada e interesses eventualmente restritos hoje em dia acabam sendo classificados e tratados como autistas. Pensando bem, eu mesmo quando era pequeno era uma criança com problemas de sociabilidade, demorei um certo tempo para falar direito e tinha interesses bastante incomuns para a idade. Não é exagero pensar que poderia ser incluído nesse rol se fosse tratado sob esses critérios. Em tempo: entre os diversos transtornos e perturbações que apresento, TEA certamente não é um deles.

Critérios amplos nos levam a um grande grupo bastante heterogêneo que vai desde os autistas não-verbais clássicos, com muito prejuízo até aos "novos autistas", sem grandes prejuízos de linguagem e comunicação e com funcionamento global relativamente preservado. Esse quadro de autismo de alto rendimento é semelhante ao que até recentemente chamávamos de Síndrome de Asperger, que é um diagnóstico que sumiu oficialmente na classificação do DSM 5, mas segue sendo usado coloquialmente para designar esses casos mais leves e, consequentemente, com melhor prognóstico.

De toda maneira, o TEA ainda é uma doença de tratamento difícil. Faz parte daquelas doenças psiquiátricas para as quais não existe um remédio específico. As medicações são utilizadas no sentido de melhorar sintomas pontuais, como estereotipias, agitação e agressividade, ou quadros associados, como depressão ou ansiedade. Os melhores resultados continuam sendo com tratamentos de psicoterapia, com resultados eventualmente surpreendentes, principalmente quando aplicadas técnicas como terapia cognitivo comportamental (TCC), equoterapia, arteterapia ou abordagens menos ortodoxas da psicanálise. É digno de nota ressaltar também que a hoje em dia tão propalada dieta de restrição de glúten já vem há anos mostrando grandes benefícios no seguimento do autismo. Talvez o mais importante seja o trabalho da equipe junto à família, no intuito de conseguir lidar com esse desafio diário, ainda maior mesmo que entender os ornitorrincos ou ser fluente em basco, que são os transtornos do espectro autista.

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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