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Desejo vs. necessidade: parte dos nossos problemas mentais surgem daí

Luiz Sperry

27/11/2017 04h20

Crédito: iStock

O menino entrou com o pai no supermercado. Trajava uniforme do Palmeiras, completo,  meião e tudo. Pegou um carrinho e seguia o pai, que andava distraído entre as gôndolas. Entediado, o menino começou a manobrar o carrinho, ainda vazio, de forma ousada. Empinou, acelerou, freou. Com direito a efeito sonoro e tudo. O pai finalmente se encheu com a performance do moleque. Colocou as mãos nas têmporas e perguntou, irritadíssimo:

-Qual é a necessidade disso?

O pequeno palmeirense não se intimidou, como se já esperasse pela pergunta. Respondeu na lata, diabólico:

-A necessidade é que eu quero!

Quem me contou esse pequeno embate foi uma paciente. Disse que, nesse momento, teve uma epifania de que aquela frase, "a necessidade é que eu quero", resumia toda a sua neurose. E ficou decerto um pouco despeitada, por um moleque de oito anos conseguir expressar tão naturalmente o que ela levou anos de análise para começar a entender.

Bem, cada um no seu tempo. Acho importante falar de desejo e de necessidade, porque parte importante dos problemas mentais vêm desse binômio. Tem um monte de coisas que a gente precisa e um monte de coisas que a gente deseja. Como se fossem dois grandes carrinhos de supermercado. O que acontece, em geral, é que não nos damos conta do que é da alçada do desejo e vamos colocando tudo no carrinho da necessidade.

Preciso de mais dinheiro. Preciso trocar de carro. Preciso de 10.000 likes. Preciso do novo iPhone. Não, você não precisa de nada disso. Você quer tudo isso, é diferente. Num primeiro momento, parece vantajoso colocar tudo no carrinho da necessidade. Não precisa dar muita satisfação para os outros nem para si mesmo. "Ai, preciso de um telefone para trabalhar". "Ai, eu ando muito de carro". "Ai, tá tudo tão caro". Como se a gente não tivesse nada a ver com aquilo.

Só que esse movimento vai forçando o sujeito a uma posição insuportável, onde tudo é necessário. E se tudo é necessário, não entra espaço para o desejo, que é onde está a curtição. A vida se torna uma sequência interminável  de obrigações. E logo vem a angústia e a culpa, que são os anjos da guarda da neurose.

Mas se a gente colocar só o que é absolutamente indispensável no carrinho da necessidade e o resto todo no carrinho do desejo, a coisa muda de perspectiva. Ter que abrir mão de algo que a gente quer é frustrante, mas ter que abrir mão de algo que a gente precisa pode nos lançar no poço da angústia e do desamparo. Não é muito difícil sacar que as coisas que consideramos absolutamente necessárias podem sair caras demais na hora de pagar a conta. Mesmo se você incluir o analista nessa conta.

Pense nisso quando for entrar naquela roubada de emprego. Ou aquela festa de casamento que vira um pesadelo. Morar em Miami. Juntar um milhão. O terrível sonho da casa própria. Cuidado, você pode querer tudo isso, afinal, o sonho é livre. Mas duvido que você precise.

PS: Para considerações outras sobre iPhones e outros bens de consumo, ler o texto da Nina Lemos. Maravilhoso como tudo que ela escreve.

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Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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