luizsperry http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br Só mais um site uol blogosfera Mon, 27 Jul 2020 07:00:55 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Você sabe o que é campo vivencial? Saiba como ele interfere na saúde mental http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/27/voce-sabe-o-que-e-campo-vivencial-saiba-como-ele-interfere-na-saude-mental/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/27/voce-sabe-o-que-e-campo-vivencial-saiba-como-ele-interfere-na-saude-mental/#respond Mon, 27 Jul 2020 07:00:55 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1223

Crédito: iStock

A prática da psiquiatria, assim como das outras áreas de saúde mental, dispõe de algumas peculiaridades em relação às outras áreas da saúde. Por um lado, nosso arsenal investigativo é bastante limitado, tendo em vista que grande parte dos exames subsidiários utilizados pela medicina nos é totalmente inútil. Os pacientes mais afoitos muitas vezes questionam se não é necessário algum exame para a confirmação do diagnóstico, e a resposta quase sempre é negativa. Por outro lado, nós dispomos de algumas habilidades que são únicas entre todas as áreas, e é principalmente nelas que nos baseamos para fazer os nossos diagnósticos.

Numa consulta médica comum, um médico vai basear seu diagnóstico numa entrevista e esses dados serão associados a um exame físico, que o levarão a algumas hipóteses e, consequentemente, ao tratamento. Em psiquiatria fazemos algo semelhante: existe uma história, o exame físico é bem menos importante (mas não de todo desnecessário) e temos também o famoso exame psíquico. O exame psíquico é um tipo de avaliação das capacidades emocionais da pessoa, baseado em dados sutis, como: o jeito que ela fala, o assunto que ela fala, as emoções que transparecem e assim por diante.

Através do exame psíquico podemos avaliar uma série de características muito importantes, como por exemplo o humor, a ansiedade, o pensamento ou a capacidade de julgamento. No entanto existe um item do exame psíquico que é bastante peculiar. Digo peculiar porque não está em todos os livros de psicopatologia, e mesmo quando fazemos uma pesquisa sobre o assunto, pouca coisa é dita sobre ele. Esse item obscuro do nosso psiquismo é o que chamamos de campo vivencial.

Não sei quem desenvolveu o conceito de campo vivencial, mas seu grande difusor no nosso meio foi o professor Carol Sonenreich. Nascido e formado na Romênia, veio ao Brasil nos anos 1960 e por aqui ficou, tendo sido o principal nome do serviço de psiquiatria do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, onde formou uma escola única no pensamento de psiquiatria e psicopatologia. Entre suas diversas contribuições, uma das mais importantes é a luz que ele lança sobre o tal campo vivencial.

O que vem a ser isso? Podemos descrever como o espaço onde nosso psiquismo atua. Se você já tentou meditar alguma vez deve ter percebido que nossa cabeça é uma fonte inesgotável de pensamentos, da mesma maneira que aquele vulcão Kilauea do Havaí, que há décadas não para de despejar lava montanha abaixo, nossa mente não para de despejar pensamentos e emoções para todos os lados. Acontece que não é todo mundo que pensa igual. E ainda mais, as doenças mentais podem mudar os nossos pensamentos.

Algumas doenças fazem com que percamos o interesse nas coisas, como a depressão ou a doença de Alzheimer. Nesse caso podemos dizer que o campo vivencial se estreitou, porque a quantidade de coisas que fazem parte da nossa vida mental diminuiu, assim como a intensidade com que nos ligamos a elas. Num quadro de ansiedade também isso pode ser observado, com nossos pensamentos e emoções se ligando fortemente a assuntos em geral desimportantes (Vai chover? Será que vai ter trânsito? E se eu esquecer o horário?). Em geral estados patológicos levam a um estreitamento do campo vivencial.

O que não nos permite concluir que “quanto mais campo vivencial melhor”. Porque o melhor exemplo de campo vivencial expandido é certamente o estado maníaco bipolar. O bipolar se interessa por tudo, com grande intensidade, ele quer estar em todos os lugares em todos os tempos. Isso é muito grave porque afasta a pessoa da realidade, podendo em muitos casos ser fatal. Veja o caso do rapper Kayne West, que dizem que é bipolar. Na mesma semana lançou um disco novo, brigou com meio mundo (mulher e família inclusive), virou candidato a presidência dos EUA e botou parte da sua credibilidade em risco. Não sei se ele está em crise maníaca, mas o campo vivencial parece estar explodindo de tão grande, e isso é um grande problema.

Existem também aquelas pessoas que são adoradoras do utilitarismo e funcionam de uma maneira que lembra um estado maníaco, mas é artificial. Elas tem que aproveitar tudo, tem que viajar, fazer churrasco, estar em todos os lugares, tirar fotos em todos os lugares. Mas nesse caso o funcionamento em geral é neurótico, porque elas são compelidas na verdade por um sentimento de culpa que diz: “você está perdendo algo importante”.

Isso talvez seja uma reação, porque nosso estilo de vida atual nos compele para uma rotina de duas notas que são: trabalho/consumo. Se você trabalha e consome você só faz duas coisas da sua vida, logo seu campo vivencial muito provavelmente é estreito. Com a quarentena a tendência é que ele tenha piorado, virando algo como: tarefas domésticas/consumo (menos). Ou home office/noticiário covid-19. E aí a gente pergunta se esse campo vivencial reduzido é consequência dos problemas mentais ou se ele não é a própria causa da perturbação.

Não sei ao certo, mas parece que temos que esticar isso aí. A duras penas, como todo alongamento, temos que fazer com que nossa mente ocupe, ou reocupe, terrenos que são nossos por desejo e por direito. A gente quer estar com as pessoas, com a nossa família, sentar na calçada e ver a Banda de Ipanema.

]]>
0
Nossas memórias e sensações podem enganar: não há como ter certeza de nada http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/20/nossas-memorias-e-sensacoes-podem-enganar-nao-ha-como-ter-certeza-de-nada/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/20/nossas-memorias-e-sensacoes-podem-enganar-nao-ha-como-ter-certeza-de-nada/#respond Mon, 20 Jul 2020 07:00:42 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1217

Crédito: iStock

Todos nós temos o hábito de nos apegar a nossas convicções. Na verdade, quanto mais convicções arraigadas, mais fácil fica viver a vida. Essa ideia de repensar, questionar — tão própria do método filosófico –, não deixa de ser um processo perigoso, podendo levar a sentimentos muitas vezes insuportáveis para a pessoa. Veja, por outro lado, o homem que segue alguma seita ou até mesmo um guru; ele vai estar confortavelmente acomodado na solidez das suas verdades. O problema é que nós somos enganados o tempo todo.

Não vou aqui falar especificamente de seitas ou gurus. Não tenho afeição nem por um, nem por outro. Claro que as seitas e os gurus enganam as pessoas em benefício próprio, mas esse não é o ponto. A questão principal é que nossos conceitos são formados a partir de experiências sensoriais que nós temos. Aquilo que a gente vê, aquilo que a gente escuta, o que a gente sente. Quanto mais aprendemos sobre os nossos sentidos, mais percebemos que eles são falhos e limitados.

Tudo que a gente percebe sensorialmente precisa então ser processado e armazenado como um tipo de arquivo de memória. É com esses objetos que nossa mente vai lidar, não com o objeto real, mas com a imagem dele, com o objeto imaginado. Em princípio a gente pensa que o objeto imaginado é uma cópia fiel do objeto real, mas não é. Basta você olhar atentamente para um objeto qualquer à sua volta e então tirá-lo do seu campo de visão. O objeto agora imaginado é muito mais distorcido e menos nítido que o real, quase fantasmagórico.

Esses objetos são então armazenados de acordo com um certo fio narrativo e isso tem um motivo. Nossa cabeça não lida bem com lacunas. Sabe quando você bebe demais e no dia seguinte fica tentando juntar as imagens fragmentadas do que aconteceu, tipo no filme “Se beber não case”? Pois é, as memórias embaralhadas e com lacunas provocam uma profunda inquietação na gente. 

Para evitar isso nós somos capazes de desenvolver falsas memórias, para satisfazer o nosso aparelho psíquico e deixar o menor número de perguntas sem resposta. Isso é muito comum na infância, onde muitas das lembranças mais precoces que nós temos não são lembranças de fato, mas falsas lembranças que formamos a partir dos relatos de outras pessoas. Muitas vezes as lembranças são formadas para encobrir uma lembrança traumática (como cita Freud em seu texto Lembranças Encobridoras) ou mesmo como materialização de um desejo, como o mesmo Freud cita na célebre Carta 69 a Fliess. Nessa carta ele estabelece a hipótese de suas pacientes histéricas sofrerem não de um abuso sexual na infância real, mas sim de um abuso imaginário.

Esse tipo de memória falsa também é muito frequente na outra ponta da vida, notadamente em pacientes com quadros de demência. Às vezes a gente fica preocupado com longas narrativas: “Ah, doutor, ontem saí com meu marido para fazer compras, a gente estava muito preso em casa, sabe? É essa doença terrível, esse corona”. Olho sobressaltado para o familiar que me tranquiliza: “que nada doutor, meu pai morreu tem doze anos já, ela passou o dia em casa ontem”. Menos mal. Nesse caso específico, as falsas lembranças são chamadas confabulações.

Você talvez esteja se pensando se as suas crenças religiosas ou no seu guru estariam abaladas por essas informações, não é a intenção. Só quero dizer é que nosso conhecimento é formado a partir de um longo telefone sem fio, onde existem partes faltantes e contraditórias em todo momento, como num roteiro ruim escrito às pressas. E é o nosso trabalho aperfeiçoar essa narrativa a cada momento.

]]>
0
Tudo bem desejar a morte de alguém? Psicologia explica esse sentimento http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/13/discussao-politica-trouxe-a-tona-desejos-por-mortes-o-que-a-psicologia-diz/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/13/discussao-politica-trouxe-a-tona-desejos-por-mortes-o-que-a-psicologia-diz/#respond Mon, 13 Jul 2020 07:00:52 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1208

Crédito: iStock

Às vezes a gente não quer falar de um assunto, porque a discussão vai se tornar algo estéril, onde as pessoas vão entrar já com uma opinião formada e haverá muito pouco espaço para a reflexão. As discussões políticas atuais, por exemplo, passam quase todas por este caminho, não havendo espaço para concessão de nenhum dos lados. Mas eis então que surge um assunto que diz respeito a todos nós, que é essa coisa da vida e da morte. Mais especificamente sobre o desejo de morte.

O fato que deu origem à discussão dessa vez foi o anúncio pelo presidente de que estava com o novo coronavírus. Imediatamente começaram as manifestações públicas, que foram sintetizadas de uma forma talvez espalhafatosa, pelo colunista Hélio Schwartsman, na Folha dessa semana. Ele fala entre outras coisas que, se Bolsonaro é responsável, pela sua negligência, pela morte de dezenas de milhares de pessoas, seria ético torcer para que ele morresse, pois isso seria evitar, teoricamente, um número de mortes muito maior.

Imediatamente pegou-se fogo no parquinho. A ombudsman Flavia Lima fez uma consideração interessante nesse domingo sobre o assunto. Alguns ficaram ultrajados e denunciaram “o falso moralismo esquerdista, que só vale para os outros”. Outros cobraram empatia “mesmo com aquele que nunca a demonstrou”. É o jogo da direita!”, dizem uns. “Não, é o jogo da esquerda”, dizem outros. Acusações e dedos em riste para tudo que é lado. Alguns ainda proclamaram: “falhamos como civilização”. Uma única nota destoou e chamou minha atenção: “O desejo é livre”.

Sim, porque é importante que essa discussão se dê em dois níveis. O primeiro é justamente esse, o nível do desejo. Todo sujeito é um grande balaio de desejos, de todos os tipos: desejo de ter algo, desejo de ter alguém, desejo de ser alguém e porque não desejo de matar alguém, ou de que alguém morra sem nem mesmo a gente ter que se esforçar para isso. Isso não é algo que esteja presente em algumas pessoas, isso está presente em todas as pessoas. E digo mais, desde a mais tenra infância. Quer ver? Alguns relatos verídicos.

Criança Fofinha Um, sobre o priminho recém-nascido que chegara em visita:

– Mamãe, posso arrancar os braços e as pernas dele e jogar pela janela?

Ou a Criança Fofinha Dois, para a mãe:

– Então eu posso matar o papai, casar com você e gente vai ter quarenta filhos!

A nossa sorte é que as crianças pequenas em geral não fazem essas coisas, mas o desejo está ali. O desejo de matar o priminho, matar o pai, casar com a mãe. Claro que as crianças também amam o pai, os primos e até abrem mão de casar com a mãe, de modo que esses sentimentos meio que se ajustam ao longo do nosso desenvolvimento. A gente vai aprendendo que não é muito legal pensar desse jeito e os sentimentos mais hostis (mas também parte dos sexuais e amorosos) vão sendo empurrados para uma zona de esquecimento em nossa mente, num processo que chamamos na psicologia de “recalque”.

Os desejos recalcados não deixam de existir, eles continuam lá, na região que chamamos de inconsciente, e podem ser acessados novamente, mesmo depois de muito tempo. É como arquivos de computador que você tirou da sua tela inicial, mas continuam guardados em algum subdiretório menos à vista. Um exemplo prático disso é que nós, quando em reunião com velhos conhecidos, conseguimos lembrar de fatos, às vezes de longas histórias das quais havíamos nos esquecido completamente e mesmo nos impressionamos por ainda lembrar de tanto.

O desejo de matar persiste nos adultos, em geral não mais em relação aos pais, mas deslocado em relação a diversas outras pessoas. Ao chefe, às pessoas no trânsito, no teleatendimento, às celebridades, às subcelebridades de internet, à polícia e aos bandidos. Quem não lembra do governador Witzel comemorando com soco no ar a morte de um sequestrador na ponte Rio-Niterói? Inclusive se formos ver, desejamos muitas vezes a nossa própria morte. Quando conseguimos nos dar conta do desejo, ele simplesmente já está lá, já foi desejado, escapa do nosso controle.

Ou seja, se a gente deseja matar pai, matar mãe, matar nós mesmos, por que não pode desejar a morte de Bolsonaro? Claro que pode, está liberado. “Ah Luiz, mas então pode desejar a morte do Lula também!”. Pode sim, do Lula, da Dilma, a minha, de quem você quiser. O desejo é livre.

Mas existe um segundo ponto a ser tratado, que é uma questão de algo chamado de pacto civilizatório. Para que possa haver uma convivência diferente da guerra, é necessário que as pessoas sigam determinada ética, determinado comportamento. E pela ética vigente não é adequado que a gente saia falando quem a gente quer que morra. Inclusive porque estamos no meio da maior pandemia do século, rumo aos cem mil mortos só aqui no Brasil. É extremamente insensível e ofensivo com todas as famílias em luto, com um planeta em luto, ficar replicando hashtags #ForçaCovid ou se manifestar pela morte de quem quer que seja. O momento não permite esse tipo de gracejo.

]]>
0
Conhece o rei do Instagram? Perfil mostra a crise da masculinidade http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/06/conhece-o-rei-do-instagram-perfil-mostra-a-crise-da-masculinidade/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/07/06/conhece-o-rei-do-instagram-perfil-mostra-a-crise-da-masculinidade/#respond Mon, 06 Jul 2020 07:00:51 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1201

Crédito: Reprodução / Instagram @danbilzerian

Nessa semana fui apresentado a um novo fenômeno da internet: Dan Bilzerian, o rei do Instagram. Ele não é propriamente novo, mas eu nunca tinha ouvido falar. Só descobri quem era porque parece que houve uma revolta de internautas brasileiros contra sua majestade, por motivo de misoginia e comportamento abusivo. Eles queriam “cancelar” o Bilzerian. Óbvio que não deu em nada, mas, por que essa pessoa faz tanto sucesso?

Bem, ele nasceu na Flórida, tem 39 anos e é muito rico, herdou uma fortuna do pai, Paul Bilzerian. Tentou ser militar mas por algum motivo não deu certo. Teve dois ataques cardíacos antes dos 32 anos, provavelmente em decorrência do uso de drogas. Tentou ser ator, mas nunca passou de pontas em filmes de menor expressão. Então, aproveitou a segunda chance que a vida nos dá, que é a internet, e virou um influenciador digital.

Ele tem mais de 30 milhões de seguidores, o que é meio que bastante sob qualquer ponto de vista. Assim como sua contraparte feminina, Kim Kardashian, não demonstra nenhuma habilidade especial dessas que fazem as pessoas famosas: não canta, não dança, não é especialmente bonito, nem tão rico a ponto de justificar esse sucesso todo. A graça de Bilzerian reside no tipo de conteúdo que ele posta na internet.

Suas fotos quase sempre o mostram cercado de mulheres de biquíni (ou menos que isso) em situações de ostentação. Ele no iate, ele na mansão, ele na jacuzzi. Sempre com várias mulheres em volta. Eventualmente há fotos com homens também, como lutadores de boxe ou MMA ou celebridades de verdade. Nessas fotos ele aparece muitas vezes malhando ou vestido em uniforme militar desses de camuflagem, ostentando grandes armas tipo rifles ou metralhadoras. Parece uma mistura improvável do Ken da Barbie com um Comando em Ação.

A gente não precisa de muito esforço para perceber que uma enorme parte dos seus seguidores é homem e acha muito legal essa vida de mansões, gostosas, drogas e cosplay de Comandos em Ação. É aí que entra a crise do homem heterossexual contemporâneo. Se a gente pensar bem, antes tudo era dele. Não só as armas, as gostosas ou os bonecos, mas também as artes, os esportes, a vida pública. Mulheres e afeminados, fora! A partir de certo momento, as mulheres começaram a ocupar esses espaços e os homens foram recuando. Incapazes de dividir o protagonismo, foram se refugiando em espaços cada vez mais remotos como o churrasco e o futebol. Em alguns espaços, como os meio artísticos, já são franca minoria.

Descobriram agora esses nichos de internet, onde podem destilar o seu ressentimento pela relevância perdida. Dan Bilzerian é apenas a face mais suave e cafona desse espaço de desfrute da masculinidade moderna. E antes que alguém proteste, sim, ele trata as mulheres como objetos, que estão ali para entretê-lo, porque ele é rico e está pagando por tudo, como um grande proxeneta. A mensagem é: “Como eu sou um tiozinho rico, essas mulheres vão fazer tudo o que eu quiser”. 

Ou seja, o ideal masculino de hoje em dia passa pela ideia de ser rico, de submeter as mulheres e de fazer a guerra. Nem que seja essa guerrinha de brincadeira na internet, e melhor que seja assim, diga-se de passagem. 

Não deixa de ser sintomático que a internet tenha se tornado o refúgio de outro tipo de homem que também detesta as mulheres como Bilzerian. Incapazes de encontrar seu lugar no mundo, assim como o amor nas mulheres, os chamados incels (celibatários involuntários) transformam sua frustração em ódio. Foram eles os mais ardorosos defensores de Bilzerian por conta dos ataques que sofreu essa semana. Afinal, as mulheres também estão ali porque querem e ganham com isso, certo? Até é verdade, mas isso não torna o Rei do Instagram menos idiota. Duvida? Só olhar esse vídeo no qual ele dá um chute na cara de uma mulher numa balada.

Claro que Dan Bilzerian é uma excrescência, uma aberração. Mas ele não deixa de ser uma compilação dos valores que são cultuados pelos homens heterossexuais hoje em dia. Essa cultura de armas e machismo opressão está aí, não só no Instagram do rei, mas no rap, no funk e para onde você conseguir enxergar um homem, pode reparar.

]]>
0
Por que o fim da paciência também é o fim da quarentena http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/29/por-que-o-fim-da-paciencia-tambem-e-o-fim-da-quarentena/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/29/por-que-o-fim-da-paciencia-tambem-e-o-fim-da-quarentena/#respond Mon, 29 Jun 2020 07:00:13 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1195

Crédito: iStock

Tenho visto algumas pessoas com um novo transtorno mental. É o Transtorno de Ansiedade Terceirizada Pandêmica. São pessoas que ficam extremamente angustiadas pelo desrespeito da quarentena por terceiros, partindo-se do princípio, evidente, de que elas cumprem todos os rituais do isolamento social preconizados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela mídia em geral. Acabam por ficar demasiadamente amargas e sentindo-se absolutamente impotentes, tendo em vista que o isolamento está cada vez menos isolado, ao que parece.

Antes que eu me esqueça: não existe Transtorno de Ansiedade Terceirizada Pandêmica. É um termo que eu inventei, mas poderia existir, pois hoje em dia as doenças mentais surgem assim. Você vê algo acontecer várias vezes, inventa um nome, mostra que melhora com algum remédio e voilà: aí está a nova doença. Mas não é a minha intenção criar doença nenhuma, nem acho que isso seja uma doença de fato, são apenas pessoas sofrendo por causa de agruras que acontecem na vida de todo mundo. No caso da pandemia, literalmente todo mundo.

O problema é que a gente não tem como dar conta das questões que são do outro. Cada um sabe o quanto aguenta e o quanto deixa de aguentar. Quem me ensinou isso foi uma analista minha, anos atrás. Cheguei pra fazer análise, babando, mais louco que o Batman e perguntei: “quantas vezes por semana preciso vir?” Ela respondeu: “quantas vezes você quiser, cada um sabe o quanto aguenta”. Fiquei maravilhado com a frase e já comecei a babar menos naquele momento. Isso serve não só para a análise, mas também para outras coisas na vida. Trabalho, barulho, encheção de saco e -por que não?- quarentena.

Eu, por exemplo, que tenho uma esteira em casa, consigo atender por vídeo e até receita eletrônica consigo fazer. Posso aguentar meses ou até mesmo anos nessa pegada. Não que eu ache propriamente gostoso, longe disso, mas não quero pegar coronavírus e morrer. Por outro lado tem gente que não aguenta, e não é só pela condição econômica, é pela condição emocional. Quando falaram que haveria um tsunami de transtornos mentais eu duvidei disso e até escrevi sobre o assunto. Não que eu não ache que o isolamento possa desencadear crises, porque de fato ele pode. Mas porque a opção é simplesmente sair do isolamento.

É o que tem acontecido. Essa saída afobada é o resultado em grande parte justamente dessa incapacidade das pessoas continuarem quietas dentro de suas casas. Claro que existe uma pressão considerável por parte das pessoas cujos negócios foram arruinados pela pandemia. E então ficamos nesse isolamento meia-bomba que, sob certo ponto de vista, foi um sucesso. Como assim sucesso? Bem, é só olhar os gráficos de incidência e mortalidade: nós conseguimos “achatar a curva”. Todos os países tiveram uma escalada muito mais rápida que o Brasil, seguidos por medidas de lockdown e queda, mais lenta, dos casos. A nossa curva sobe mais devagar mas, como não tivemos em nenhum momento o tal isolamento acima de 70%, talvez nem tenhamos chegados ao pico ainda. 

Só que enquanto isso a paciência das pessoas acabou. É gente voltando a trabalhar, tem paciente exigindo minha presença pois não aceita teleconsulta, é festinha, churrasquinho e quando a gente para pra ver, essa semana abrem bares e restaurantes aqui em São Paulo. No Rio já teve futebol na semana passada. Com tantos casos ativos e mais gente circulando por aí é claro que vai haver um aumento de casos e de mortes por covid-19. 

E é aí que ressurgem as pessoas com Transtorno de Ansiedade Terceirizada Pandêmica. Como profetas do Apocalipse bradam para quem quiser ouvir: “Eu falei!!! Eu não disse???” Sim querido, você disse, você avisou. Mas o problema é que não é por falta de aviso, não. Todo mundo, nessas alturas do campeonato, já sabe exatamente o que tem que fazer, como lava a mão, onde bota o sapato, como faz com a máscara e por aí vai. Mesmo quem diz que não acredita, que a Globo mente, que é um exagero, no fundo, sabe exatamente qual é a real. 

Agora tem uma coisa. Não é porque você não aguenta que é um liberou geral. Não adianta sair na porralouquice por aí gritando: “Eu não aguento! Eu não aguento!”. O fato de cada um ter as suas limitações não te torna menos responsável pelos seus atos. Todo mundo tem que pensar também o quanto de risco se está disposto a correr, porque a fatura chega para todos. Para todos.

]]>
0
Covid-19 e a síndrome de Estocolmo: estamos nos afeiçoando à situação? http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/22/o-covid-19-e-a-sindrome-de-estocolmo-estamos-no-afeicoando-a-situacao/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/22/o-covid-19-e-a-sindrome-de-estocolmo-estamos-no-afeicoando-a-situacao/#respond Mon, 22 Jun 2020 07:00:10 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1186

Crédito: iStock

Essa semana se completaram três meses de isolamento social. Mais isolado para alguns, menos para outros, expondo, sem a menor sombra de dúvida, que é para quem pode, não para quem quer. Todo mundo errou, no sentido de que a epidemia foi muito mais grave e impactante do que poderiam imaginar mesmo as mentes mais pessimistas e doentias, entre as quais eu me encontro. E a pergunta que já fiz nesse espaço várias vezes segue sem resposta: quando termina?

Parece que o alerta do Dr. Dráuzio Varella lá atrás está se fazendo valer: “Esquece sua vida normal. Vai demorar muito tempo pra voltar”. Alguns dirão que estamos começando a sair disso, balela. Não estamos saindo de nada, essa tentativa pífia e atabalhoada de abertura só vai nos levar a outros fechamentos posteriores e a uma progressão mais arrastada e sofrida. Serão muitos meses com muitas mortes ainda para contar e é certeza que chegará em pelo menos 100.000 por aqui.

Até aí nenhuma novidade, é o preço que se paga pela escolha feita lá em 2018. O fenômeno mais interessante é uma certa resignação que já podemos ver a esse respeito. Se antes todos estavam ansiosos contando os dias para poder sair às ruas e encher o peito de ar puro, respirar o amor aspirando liberdade, agora parece que algumas fichas andaram caindo. Quem levantou essa questão foi um paciente meu, que disse que estamos vivendo numa Síndrome de Estocolmo.

Como assim Síndrome de Estocolmo? Para quem não é familiarizado com a expressão, Síndrome de Estocolmo é o processo no qual a pessoa que sofre algum tipo de violência persistente acaba por se afeiçoar ao seu algoz. O termo surgiu após um ataque a um banco nos anos 70, onde os reféns acabaram por tomar o lado dos assaltantes no processo que se seguiu. Claro que o processo não surgiu aí, nem deixou de existir depois disso.

Recentemente temos exemplos culturais bastante claros de como isso funciona, como na série “La casa de papel”, onde parte dos reféns acaba por tomar o lado dos sequestradores (e eventualmente se apaixona por eles) ou no famigerado filme porno soft “365 dias”, onde um milionário sensual sequestra uma moça com a intenção de que ela se apaixone por ele. Apesar de experiências como sequestro e abuso serem na sua esmagadora maioria bastante traumáticas, não é impossível que esses desfechos ocorram.

Mas qual seria o nosso sequestro? Bem, de fato estamos quase todos vivendo num tipo de cativeiro, onde o grande carcereiro, o nosso grande algoz, é o próprio coronavírus. O monstro de dimensões microscópicas tem pautado a vida e o funcionamento do mundo todo esse ano. E se demonstrou um negociador implacável. Aqueles que não atenderam às suas demandas, indivíduos ou governos, pagaram caro. 

O que ocorre é que quem pode tem se adaptado bem a essa nova realidade. Cada dia aumenta o número de pessoas que dizem que estão melhor agora do que antes. Nada de trânsito, nada de chefe, nada de almoço por quilo com os colegas nem sempre tão queridos. Claro que o medo de ficar doente, com milhares de casos novos por dia e milhares de mortes decorrentes, ainda é um fator bastante pesado. Perguntou meu paciente: “Se tudo abrisse amanhã, você sairia para ir num restaurante, por exemplo?”

Não tive que pensar muito para responder que não, de jeito nenhum. Agora que consegui uma esteira emprestada,  estou pronto para ficar por aqui,  atendendo à distância,  por muitos e muitos meses. Não que eu goste disso ou tenha dificuldades sociais, muito pelo contrário. Só acho que não vale a pena nesse momento correr esse risco. Mas sob um enfoque psicológico o covid-19 é algo muito conveniente. Podemos colocar a culpa sempre nele: não cumpriu o prazo? “Essa pandemia está tudo uma loucura!”. Não consegue ficar com ninguém? “Não tem como nessa pandemia!” Sua casa está de pernas pro ar? “Ah, a covid…”

Isso se explica porque a gente tende a investir de erotismo situações dolorosas justamente para que elas sejam menos dolorosas. Isso acontece na Síndrome de Estocolmo, mas acontece também quando você acorda todo empolgado, termômetro marcando 12 graus Celsius, e vai fazer 300 agachamentos e 600 abdominais. Ainda tira foto sorrindo e acha bacana. Não é, é triste, mas a gente acredita que é gostoso para um benefício outro. Ou não?

Entendo também que essa realidade não é plausível para todo mundo. Tem um monte de gente que não tem como ficar em casa, ou não consegue ou mesmo não quer. É para isso que precisam existir medidas de suporte para que isso possa acontecer para o maior número possível de pessoas. Embora o ministro acredite que a gente pode ficar mal acostumado com os 600 reais.

]]>
0
‘Ser cotista não é ser beneficiado’, conta estudante negra de medicina http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/15/ser-cotista-nao-e-ser-beneficiado-conta-estudante-de-medicina-negra/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/15/ser-cotista-nao-e-ser-beneficiado-conta-estudante-de-medicina-negra/#respond Mon, 15 Jun 2020 07:00:29 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1180

Na semana passada, quando me peguei a observar com mais cuidado o racismo dentro da área médica, me deparei com a Larissa Alexandre. Apesar de ser estudante na mesma faculdade onde estudei há quase 20 anos já — a FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) –, as realidades são completamente diferentes. Por trás da aparência frágil e dos modos gentis, a jovem de 24 anos, moradora do Itaim Paulista, na Zona Leste de São Paulo, apresenta uma determinação inabalável.

Também, não podia ser de outro jeito. Só para chegar na faculdade são 3 horas no transporte público, todos os dias. “É horrivel”, conta. Outro problema recorrente é a desconfiança de colegas e professores, pois “eu tenho estampado na minha pele que usei cotas raciais”. Mas nada disso parece ser um impeditivo para ela, pelo contrário. Larissa se alimenta de desafios. O próximo passo? “Cirurgia”, diz ela.

Eu, que não sou jornalista nem nada, resolvi continuar essa conversa, truncada nesses períodos de pandemia por atendimentos online, para mim, e provas de final de semestre, para ela.

Luiz Sperry: Então, na faculdade é bem frequente que as pessoas tenham pais ou parentes médicos. Eu mesmo tenho pai e mãe médicos. Você tem algum médico na família ou próximo que vocês acha que tenha te inspirado? De onde veio essa ideia?

Larissa Alexandre: Exatamente, na faculdade é muito comum o estudante de medicina que tem uma linhagem na família que estudou medicina, geralmente o pai, a mãe, etc. No meu caso, ninguém da minha família fez medicina nem sequer fez faculdade pública! Todos os graduados fizeram faculdade particular e só minha mãe que é da área da saúde (enfermeira).

A minha motivação para fazer medicina foi realmente minha, unindo o gosto pelos estudos que eu sempre tive e uma enorme aptidão para as áreas biológicas. Também sempre gostei muito de desafios e acho que o que sempre me moveu foi a vontade de romper com o que está pré estabelecido pra quem é da periferia: sair do ensino médio e ingressar no mercado de trabalho. Claro que tive essa possibilidade porque minha família me ajudou minimamente. E essa não é uma escolha que todas e todos que vem da minha realidade podem fazer.

LS: Quais vantagens você acha que pode ter tido que te permitiram ultrapassar essa barreira aparentemente intransponível?

LA: É muito louco pensar que o que é visto como básico para muitos da minha turma, ou para muitos no geral, para mim é visto como vantagem. A minha perspectiva de vantagem foi não precisar contribuir com o meu salário para as contas de casa e assim conseguir financiar meus estudos preparatórios para o vestibular. E assim remar contra a maré do que estava preestabelecido.

LS: É muito louco também a gente pensar (ou não pensar) que isso tudo seja uma enorme vantagem. Não era incomum entre alunos vindos de escola pública, super minoritários, um discurso triunfalista do tipo “eu consegui, todo mundo pode conseguir, basta se esforçar como eu”. Você percebe entre a sua turma essa visão meritocrática, mesmo se beneficiando de cotas?

LA: A visão meritocrática é como se existisse no subconsciente de qualquer estudante da faculdade. Ás vezes eu me pego reproduzindo o discurso da meritocracia!

Porém, é muito evidente pra mim como meus amigos que ingressaram por cotas sociais: para quem estudou em escolas públicas no ensino médio, se referir aos cotistas raciais como “cotistas”. Eu tenho estampado na minha pele que usei cotas raciais, assim que as pessoas descobrem que fiz ensino médio em escolas públicas. Só que, quem ingressou por cota não racial, acaba tendo passibilidade na faculdade e não é visto como “cotista”.

Luiz, entenda que, ser cotista não é ser beneficiado. Um médico que tenho muito apreço e admiração me disse semana passada: eu vejo a cota como um pequeno curativo, porque ela trata na superfície um problema que é estrutural

LS: Outra coisa que chama atenção é que para uma parte grande da população não é normal nem tentar USP, muito menos USP-Medicina. Quando foi que você achou que dava pra entrar e que a chance era real?

LA: Existe uma música dos Racionais Mc’s que se chama: “A Vida é Desafio”. O meu desafio sempre foi romper com a barreira social. Para mim, quanto mais diziam que algo não era pra mim, mais eu me fortalecia para provar pra mim mesma que não era pra ser assim, eu não podia parar! E o pior é você fazer isso sem nenhum espelho a seguir! Eu trilhei um caminho muito árduo de cinco anos de cursinho, trabalhando, estudando, dando aulas, enfim! Não posso de novo entrar no discurso da meritocracia, mas já que era para partir do ponto de partida mais longe, eu queria alcançar o pódio mais alto.

LS: Conversando com você dá para sentir que há uma cobrança muito forte. Vem mais de fora ou você se cobra sempre assim?

LA: Eu sempre me cobrei muito uma excelência acadêmica, desde criança. Isso talvez perpasse o racismo velado que eu sempre sofri desde criança. O meu primeiro racismo sofrido que eu lembro foi aos 4 anos de idade oriundo de uma professora. Mas, sempre há a cobrança externa e essa corrobora para uma cobrança interna!

LS: Como foi essa questão com a professora?

Nossa, esse é pesado. Eu estudava em uma escola particular e já sabia ler e escrever. Ela não falava comigo, não me abraçava, não valorizava o fato de eu já ser bastante avançada. Até aí tudo bem. Teve uma vez que teve um brinde na escola e a gente ia ganhar um copo do Digimon [um desenho da época]. Só que meus pais não leram que tinha que levar 2 reais para pagar o copo. Ela então me deixou sem copo porque disse que meus pais não teriam condições de pagar depois, sendo que ela deixou outras crianças pagarem depois. Fiquei chorando no canto da sala e fiquei até doente depois disso. Meus pais brigaram com a diretora e até me tiraram da escola, deu a maior confusão.

LS: Uma vez dentro da faculdade de medicina depois de tanto esforço, você ficou maravilhada ou decepcionada? 

LA: O sentimento de dentro da faculdade é sempre de abaixo do esperado. Acho que eu trato a faculdade com um certo grau de apatia que ela me recebe. É difícil demais estar em um espaço que eu não me reconheço, que não me representa institucionalmente.

Mas, eu reconheço que isso está mudando, o nascimento do Núcleo Ayé (Coletivo Negro) e as cotas raciais acabam por colocar essa representatividade mais em evidência.

LS: você demora três horas pra chegar na Faculdade, as pessoas te subestimam, as instituições têm uma série de limitações que atuam pra derrubar a moral dos estudantes. De tudo isso o que te é mais doloroso ainda, mesmo com tudo que você vem conseguindo?

LA: Luiz, a falta de reconhecimento e pertencimento ao lugar. Eu sinto a força do racismo estrutural muito forte na faculdade, nos hospitais e na saúde. Eu tenho que me provar a todo tempo o que eu faço, o que eu sei e o que eu posso! Acho que isso de ser subestimada me acompanhará por bastante tempo, acredito.

LS: Como você enxerga o futuro do Faculdade sob essa nova perspectiva de democratização do acesso das pessoas a essas áreas?

LA: Como eu falei do pequeno curativo lá atrás, a gente sabe que é uma democratização virtual! Se todas as pessoas que ingressarem sob essas condições não pautarem isso, não encorajarem outras pessoas, não se autoafirmarem, não pautarem pesquisas da temática negra e de outras minorias, não levarem a USP às periferias através de ações afirmativas, essa esperança de democratização pode não se mostrar realmente efetiva! Mas, eu sigo otimista de que não só eu como os que vieram comigo, assim como os estudantes que estão por vir, farão a diferença.

]]>
0
Racismo, psiquiatria e psicanálise: onde estão os negros nessa área? http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/08/racismo-psiquiatria-e-psicanalise-onde-estao-os-negros-nessa-area/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/08/racismo-psiquiatria-e-psicanalise-onde-estao-os-negros-nessa-area/#respond Mon, 08 Jun 2020 07:00:34 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1167

Crédito: iStock

– Doutor, o tema essa semana tem que ser racismo, você tem que falar sobre a saúde mental da população negra.

Quem fez a sugestão foi a Leitora Misteriosa. Ela adora dar palpites e sugestões, cheia de ideias. Em geral as ideias são boas mesmo, e acabo por acatá-las e usar no texto. Mas dessa vez a sugestão tinha um que quase de imposição: você tem que falar de racismo.

Parto do princípio que a Leitora Misteriosa seja branca, inclusive parto do princípio que seja mulher também, já que seu avatar é uma imagem da Disney e não a conheço pessoalmente. Não pensei em nenhum momento em escrever sobre outra coisa, inclusive porque não se fala de outra coisa, e quando as pessoas estão muito fixadas num assunto vale escrever sobre ele.

Comecei o processo como sempre faço quando falo de um assunto com o qual não estou familiarizado: a gente começa pesquisando. Mas logo de saída minha estrada entortou: fora o óbvio “saúde mental – racismo pesquisar”, não vinha nenhum texto, nenhuma recordação, nenhuma imagem que me fizesse ir um pouco mais adiante. Claro que vieram questões já tratadas principalmente no campo da psicanálise, como o antissemitismo enfrentado por tantos, inclusive pelo próprio Freud, que saiu da Áustria fugido num rabo de foguete. Mas racismo e genocídio contra pretos, que é o que a gente está tratando agora, aqui e lá fora, não tem registro nenhum.

Outro dia reparei na letra da canção do Gilberto Gil “Tradição” que fala: “no tempo que preto não entrava no Bahiano, nem pela porta da cozinha”, criticando o elitismo racista do Clube Bahiano de Tênis, em Salvador. Não me dei conta que estudei em escolas onde pretos também não entravam, inclusive na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Não seria um exagero se dissesse que tive 1% de colegas pretos nesses anos todos de estudo. Se você me perguntar o nome de 10 médicos pretos, eu não consigo dizer para você. Entre meus professores, foram apenas dois. Um dos poucos que fizeram faculdade comigo morreu antes de terminar a residência. Assassinado.

Por conseguinte, a chance de haver um psiquiatra negro é muito menor. E não havendo psiquiatras negros é muito mais improvável que se conduzam linhas de pesquisa sobre o assunto, é muito mais improvável que se implemente alguma política pública sobre o problema. A medicina no Brasil é uma área quase que exclusivamente branca num país de maioria negra.

Não é preciso fazer muito esforço para lembrar os médicos cubanos, quase todos pretos, sendo xingados de escravos por outros médicos, todos brancos, o ódio racial voando junto com os perdigotos. O ódio aos médicos cubanos, que vai muito além de qualquer falha que o programa pudesse ter (e de fato tinha), mostra que o problema não é resultado apenas da diferença de oportunidades que as pessoas tiveram lá atrás, mas de um sistema que ativamente tenta tirar os negros completamente desse campo de atuação. “Ah, mas nós estávamos preocupados com a qualidade do atendimento!”- Mentira! Nunca estiveram, ainda hoje vocês estão aí defendendo cloroquina. Aliás, os cubanos que permaneceram no Brasil receberam recentemente uma nova licença para trabalhar em época de pandemia. Para morrer na linha de frente ninguém faz ressalva.

Pois não é menor o espanto quando me viro para o campo da psicanálise e vejo, ou melhor, não vejo, linha sobre o racismo. Justo a psicanálise, que tem como uma de suas pioneiras a lendária Virgínia Bicudo, cuja trajetória é sempre lembrada, mas poucas vezes seguida. Em parte por ser uma ciência feita pela burguesia para a burguesia, mas não só por isso.

A psicanálise teve tempo e interesse em se tornar uma terapia para as massas e ainda hoje ocupa um lugar de destaque entre as ciências psicológicas. Sempre se marcou por ser atuante no que concerne uma integração do social com o mundo psíquico. Podemos encontrar grupos de estudo sobre a condição da mulher, dos LGBTQIA+ em seus variados recortes, das vítimas de violência doméstica e de violência política. Não conheço nenhum grupo que seja específico de racismo. Claro que isso está diretamente relacionado à dificuldade da psicanálise de se democratizar e chegar a todos que poderiam dela se beneficiar.

Claro que ao longo dessa breve pesquisa, tomei conhecimentos de pessoas e grupos bastante sérios que tratam da questão. Mesmo assim ainda é mais fácil achar correlações entre a psicanálise e o nazismo ou antissemitismo do que racismo no Brasil, como se a gente estivesse na Alemanha ou Israel. Um dos poucos autores negros importantes é Frantz Fanon, antilhano de nascimento, depois radicado na Argélia. Fanon fala como negro, mas também como estrangeiro num país colonizado e depois como estrangeiro em outro país colonizado. Sem dúvida que a questão do racismo é marca de seu pensamento, mas não é como aqui, onde se é não-pertencente dentro do próprio país. 

Desse modo, infelizmente é impossível se fazer um panorama da saúde mental da população negra no Brasil. Existem constatações, por inferência, que, sendo a maior parte da população e sendo vítima de violência sistemática (policial inclusive), é uma parcela que está mais vulnerável aos transtornos mentais de todos os tipos. Por ser parcela da população com menos acesso aos recursos de saúde mental, os casos tendem a se agravar e se cronificar nessa parte da população. Basta ver a cor da Cracolândia para se ter uma ilustração.

Mas nem todas as notícias são ruins. Apesar da minha experiência pessoal apontar nesse sentido, temos grandes variações regionais pelo país. Graças às políticas de cotas, a presença de negros no curso de medicina saltou de 8,4% em 2010 para 24,6% em 2018. Mesmo assim ainda é o curso superior onde se vê a menor presença de pretos e pardos (a média entre todos os cursos é de 35,7%). Na própria Faculdade de Medicina da USP as cotas começaram pra valer nos últimos dois anos apenas, mas a diferença já pode ser percebida. Hoje são cerca de 50 alunos beneficiados por essa política de inclusão, o que é uma enormidade perto de um ou dois por turma, ou mesmo nenhum.

É nesse contexto que a política de cotas parece ser fundamental. É necessário um passo além, e esse passo não pode ser dado por mim, que sou branco. Não posso fundar um grupo de médicos contra o racismo nem de psicanalistas, não faria sentido nenhum. Mas posso lutar pela inclusão dessas pessoas no sistema, porque sem isso, não há nenhuma esperança.

*Com a colaboração da acadêmica Larissa Alexandre, da Faculdade de Medicina da USP e da psicanalista Vivian Alvarez.

 

]]>
0
Pandemia mostra como certas características mentais também têm um lado bom http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/01/os-hipocondriacos-tambem-ficam-doentes/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/06/01/os-hipocondriacos-tambem-ficam-doentes/#respond Mon, 01 Jun 2020 07:00:03 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1157

Crédito: iStock

Com os eventos pelos quais temos passado nos últimos meses, podemos observar uma mudança interessante. Pessoas que antes eram mais adaptadas à antiga realidade tendem a sofrer mais do que pessoas que antes eram desadaptadas. Traços psicológicos como introversão e alguns comportamentos neuróticos passaram a ser adaptativos, enquanto uma alta sociabilidade, por exemplo, se tornou talvez uma fraqueza. Os obsessivos e os hipocondríacos estão vivendo o seu grande momento.

Penso eu que alguns traços psicopatológicos sejam, de certa maneira, úteis para a sociedade. Se pensarmos numa tribo primitiva qualquer, seria interessante ter um obsessivo que checasse compulsivamente a integridade de lanças e flechas antes de cada caçada. Ou um paranoico que montasse guarda dia e noite. Os hipocondríacos, claro, sempre atentos às doenças e aos possíveis tratamentos, ainda que tenham sido bastante rudimentares até recentemente.

Podemos ir além. Que homem se lançaria no meio do Oceano Pacífico, há centenas de anos, numa canoa, guiado apenas pelas estrelas? Um tipo de bipolar maníaco-depressivo, sem dúvida. A frieza e crueldade dos psicopatas sempre esteve marcada nos livros de história, através de militares e governantes impiedosos. Até mesmo aos psicóticos, que escutam e enxergam coisas, muitas vezes foram reservados papéis de destaque como sacerdotes e líderes religiosos.

O problema é que a doença mental não é, quase nunca, benéfica sob o ponto de vista do sujeito doente. Em geral ela causa sofrimento em diversos graus, além de incapacidade, levando a um outro custo social. Mas muitas vezes temos que imaginar que ela possa, num determinado contexto, trazer algum benefício. O que vai dar essa medida é justamente a realidade, que está sempre mudando.

Se a gente for pensar bem, “os paranoicos também têm inimigos, assim como os hipocondríacos também ficam doentes”. Essa frase, brilhante e preciosa, é de autoria da professora Maria Lucia Baltazar. 

Isso quer dizer que então, se eles têm inimigos ou doenças, eles não são doentes? Justamente o contrário. Eles continuam doentes, mesmo e apesar de, em algum momento, terem razão. Porque a doença mental, o transtorno, ele acontece dentro da nossa cabeça, não fora. Quando o de dentro está comprometido, a coincidência com o de fora não passa disso, de uma coincidência.

Voltando à questão da pandemia, temos um exemplo histórico que é bastante ilustrativo. Em Viena, em meados do século XIX, o lendário médico Ignaz Semmelweiss notou que havia uma relação entre a morte de gestantes pós-trabalho de parto e as aulas de anatomia. As gestantes assistidas pelos estudantes que saíam da aula de anatomia tinham um índice de mortalidade muito maior do que aquelas que eram assistidas por parteiras. Apesar de na época já se conheceram os microorganismos, não se creditavam a eles um papel nas infecções e doenças.

Semmelweiss concluiu mesmo assim que devia haver relação entre aquilo que ele chamou de “partículas cadavéricas” e a morte das gestantes. Importante notar que até então não havia relação nenhuma entre sujeira e doença. Os médicos dissecavam cadáveres, podres, sem luvas, e daí iam realizar outros procedimentos. Assim era feito tudo no hospital, cheio de sangue, pus, fezes, urina e catarro. 

Claro que as pessoas morriam muito. O que eles propôs foi que simplesmente os estudantes lavassem a mão com um desinfetante entre a aula e o parto. A mortalidade então caiu de 18% para 2%, quase dez vezes, apenas com esse procedimento. Deveria ser aclamado como um gênio revolucionário, mas na verdade foi duramente criticado por seus colegas que o ridicularizavam e o tratavam como um louco. Inclusive porque para o establishment médico era de certa forma incômodo considerarem que eles próprios eram responsáveis pela morte das pacientes por conta de suas patas imundas. Então preferiram continuar matando as pacientes, mesmo contra as evidências, porque lhes parecia melhor assim. Assustador, não?

Nos dias de hoje, onde ainda acontece algo semelhante, mas ao menos as pessoas lavam mais as mãos, fica a dúvida. Estamos exagerando? Em sua coluna, Luiz Felipe Pondé diz acreditar que “os paranóicos e hipocondríacos venceram”. Sob certo ponto de vista, sim, como eu afirmei lá em cima, eles vivem seu grande momento. Mas não no sentido de vitória, porque não há uma disputa a ser vencida, mas pela possibilidade de desfrutar do prazer de realizar essas taras de conflito (os paranóicos) e de limpeza e doença (os hipocondríacos). Repito: o fato da doença existir não faz a hipocondria se tornar sanidade.

Mas até quando? Temos por aqui pouco mais de dois meses de isolamento e as pessoas já fervilham de um lado para o outro. A própria angústia sobre quando e como isso tudo termina demonstra que o foco está mais lá, no prazer do porvir, do que aqui, no prazer neurótico da pandemia. Vejo muita gente ansiosa por furar a quarentena, ou mesmo furando, como a Flor do Asfalto, de Drummond, que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. A vida sempre vence.

]]>
0
Em tempos de coronavírus, o que realmente pode proteger nossa saúde mental? http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/05/25/em-tempos-de-coronavirus-o-que-realmente-pode-proteger-nossa-saude-mental/ http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2020/05/25/em-tempos-de-coronavirus-o-que-realmente-pode-proteger-nossa-saude-mental/#respond Mon, 25 May 2020 07:00:42 +0000 http://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/?p=1148

Crédito: iStock

Nesses dias, alguém lançou a questão: “Qual a cloroquina da sua profissão?”- entenda-se por “cloroquina” alguma substância ou procedimento que não tenha utilidade, mas mesmo assim seja alçado a um ponto central de discussão por algum outro motivo. Primeiramente pensei como médico e respondi: “cloroquina, claro”. Mas logo veio a pergunta, mais difícil e por isso mesmo mais saborosa: o que é de fato que funciona ou não para a saúde mental nesse contexto de pandemia?

O que eu chamo de contexto de pandemia é uma situação onde se percebe um agravamento dos casos de doenças mentais já existentes, assim como o surgimento de novos casos em decorrência do estresse causado pela doença ou pelo isolamento social. Do ponto de vista epidemiológico existem indícios de um aumento da incidência de diversos transtornos, tanto no Brasil como em outros países. 

O que não é possível afirmar é a existência do chamado “tsunami mental”, expressão que surgiu na Inglaterra nessas últimas semanas. Os britânicos previram a possibilidade de um aumento descontrolado do número de casos que ainda não ocorreu, nem aqui, nem lá. Mas se não houve esse transbordamento, fundamental para que a gente caracterize tsunami, sem dúvida houve um grande aumento, ao menos uma alta da maré. Os psicanalistas que, assim como os infectologistas e os economistas keynesianos, ocupavam lugares modestos nessa grande fila do pão que é à vida, foram promovidos a um protagonismo do qual não gozavam há um bom tempo.

O que quero dizer com isso? Explico: apesar de ter bastante trabalho, as pessoas não estão se jogando dos prédios ou inundando os serviços de emergência psiquiátrica. Não tem ocorrido um aumento desenfreado nas internações. E já existem algumas evidências do que pode funcionar e também do que não pode funcionar no que concerne essa questão especificamente.

O que tem aparecido como indicação de ponta, pasmem, é mesmo a psicoterapia. Não a nossa clássica e saudosa análise de transferência, pessoal, com divã e pagamento em dinheiro vivo. Mas a análise possível, por vídeo ou telefone, com wi-fi instável, sujeita a interferência de choro de criança, bateria acabando ou panelaços inesperados. Nesse sentido minha impressão confirma a literatura; quem pode fazer está segurando melhor.

Outro achado interessante é que simplesmente manter uma agenda de atividades e conversar com as pessoas já melhora nossa condição mental. Sem dúvida outras coisa que renasceu – além de psicanalistas, infectologistas e economistas keynesianos – foram os telefonemas. Atividade de comunicação em franco desuso, o telefonema estava fadado a se juntar ao telégrafo e aos sinais de fumaça enquanto método obsoleto. Mas eis que a epidemia de coronavírus nos levou à percepção de que a palavra falada tem um poder superior ao da palavra escrita. Tornaram-se comuns como não eram há muitos anos as antigas ligações de dezenas de minutos (tempo de espera em SAC de operadora não conta, ok?).

Outras recomendações que seguem talvez um princípio do bom senso precisam ser relembradas, inclusive porque o próprio bom senso está em se tornando algo obsoleto. Evitar excesso de álcool e outras drogas, fazer exercícios, evitar uso muito intenso de dispositivos eletrônicos (talvez o mais difícil de todos) e vejam só, procurar ajuda quando a gente precisa de ajuda, parecem recomendações simplórias, que inclusive eu já devo ter feito aqui, mas nunca é muito repetir aquilo que é boa prática.

Um último fator protetor que também já citei é a presença de crianças em casa. Quem tem criança fica menos doente da cabeça. Mesmo assim não sugiro que vocês resolvam ter um filho agora, vai demorar nove meses para nascer e até lá a quarentena já vai ter terminado. Ou não; oremos.

]]>
0