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Blog do Luiz Sperry

Entenda porque a felicidade é um conceito superestimado

Luiz Sperry

10/06/2019 04h00

Crédito: iStock

Recentemente tive a felicidade de saber que foi relançada toda a coleção do "Príncipe Valente", pela editora Planeta DeAgostini. É uma obra de quadrinhos finíssima, que marcou minha infância, de modo que li e reli cada volume compulsivamente ao longo desses anos. Quando releio essas histórias consigo lembrar exatamente do que senti nas outras vezes em que as li, décadas atrás.

Mas aí você talvez esteja se perguntando porque o blog de psiquiatria está nessa nostalgia de velhos quadrinhos. É que tem uma história em particular que tem tudo a ver com psiquiatria, mais ainda com psicanálise. É uma história na qual o Valente se mete com a bruxa Horrit, que é meio que sua amiga, mas nem tanto. A bruxa resolve ler seu futuro e diz que enxerga muitas aventuras e acontecimentos grandiosos, mas nenhuma felicidade. Para alegria da bruxa, que era um pouco sádica, Valente sai do casebre dela sem eira nem beira, perturbado pelas previsões de infelicidade.

Por conta disso, o príncipe vai bater na porta de ninguém menos que Merlin, que como sempre é o cara. Conta para ele as previsões e solicita uma ajuda, um contra-feitiço ou algum conselho que consiga salvá-lo dessa sina terrível. Merlin, psicanaliticamente, dá de ombros. O príncipe insiste, e o mago perde a paciência: "Felicidade! Felicidade! Todos querem felicidade, mas apenas uma tartaruga deitada ao sol sabe realmente o que é felicidade!".

Ou seja: você é um cavaleiro, o que mais você pode querer senão glória e eventos grandiosos? Felicidade pra que? Não foi à toa que essa sequência permaneceu gravada na minha memória por tantos anos. Uns anos atrás me lembrei dela numa sessão de análise, quando meu analista, que era um tipo de Merlin me cortou dizendo: "Luiz, o conceito de felicidade não serve para muita coisa aqui nesse espaço".

Mas que diabo seria essa felicidade que todos querem e não serve para nada? A não ser talvez, para as tartarugas? Não é uma pergunta qualquer, é possível passarmos um longo tempo discutindo esse conceito. Existe um ramo da psicologia que é justamente a ciência da felicidade. Eles tentam avaliar quais são as dimensões do bem estar e em que medida elas estão ligadas àquilo que podemos chamar de "felicidade".

Mas se a gente olhar de perto, sempre vamos voltar no ciclo de falta, angústia, desejo, satisfação. Por exemplo, pense numa pessoa infeliz. A imagem emblemática de pessoas tristes muitas vezes é associada a alguém que perdeu alguém ou algo. Alguém que tem um amor não correspondido, por exemplo. A infelicidade se dá nesse momento pela falta. Essa falta gera um processo de angústia, de sofrimento. Esse sofrimento leva ao desejo de estar com a pessoa, para que o sofrimento diminua e, se de fato dá certo (com essa pessoa ou com outra) temos uma situação de satisfação que talvez se assemelhe a uma experiência de felicidade. Ou seja, o que chamamos de felicidade é, em parte, realização de desejos.

Volto então à imagem da tartaruga ao sol. Essa tartaruga, via de regra, tem apenas um desejo, que é se manter quentinha, e ele está realizado. Do ponto de vista existencial, podemos dizer que a tartaruga tem todos os seus desejos realizados, isso sim seria a felicidade. E veja bem, ela só conseguiu porque é um só. Quando temos muitos desejos e metas diferentes, a chance de nos sentirmos muito incomodados e angustiados é muito maior, tendo em vista que estaremos sentindo falta de muito mais coisas. E essa é a pegada da nossa vida de hoje em dia: carro novo, celular 5G, corpo perfeito, bens de consumo, noites de sono, tantas possibilidades de sexo. Tanta coisa a um toque de distância, tanta coisa que não temos.

A resposta a isso é óbvia. Se tantos desejos levam a tanta frustração e a tanto sofrimento, não faria sentido diminuirmos nossa expectativa e reduzirmos o desejo a algo próximo da tartaruga, de modo que nos contentemos apenas com os raios de sol? Essa é uma mentalidade próxima do pensamento budista e de outras religiões orientais. Não é à toa a imagem do monge ascético meditando sorridente. Por outro lado o que nos mantém vivos e ativos é justamente nossa capacidade desejante. O que seria de nós, não fôssemos inconformados e sonhadores?

Porque existe apenas um momento no qual todas as angústias desaparecem, assim como todos os desejos. E a esse momento não chamamos felicidade. Esse momento chama morte. É a única hora na qual não precisamos de mais nada. E apesar de ser perturbador, é digno de nota saber que existe algo dentro de nós que nos leva para isso. Sabe quando a gente para pra pensar e percebe que estamos jogando contra nós mesmos? Então, é isso.

Pessoalmente, prefiro continuar com a humilde satisfação dos meus pequenos desejos. Histórias em quadrinhos, tocar violão, abraçar nossos filhos. E ok, um feito grandioso de vez em quando não faz mal a ninguém, certo?

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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