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Blog do Luiz Sperry

A psiquiatria é uma ciência e seu debate se faz com dados e com democracia

Luiz Sperry

03/06/2019 04h00

Crédito: iStock

Existem algumas desavenças no campo científico que dividem quem trabalha com doenças mentais. Um exemplo claro disso é a origem dessas doenças. Quase todo mundo quer saber a causa, por que de uma hora para outra surgem as crises e o sofrimento. É um pouco desalentador dizer que a gente não sabe, mas na verdade a gente não sabe mesmo. Assim como a gente não sabe exatamente como surge a hipertensão, o diabetes e a grande maioria das doenças que nos aflige.

Mas podemos sem dúvida fazer teorias. A psicanálise, que tanto se debruçou sobre a questão da origem das doenças mentais, tem como teoria fundamental que as doenças surgem como resultado do processo de formação do aparelho psíquico. Ou seja, o sintoma vai surgir como uma resposta a um ou mais eventos geralmente relacionados à infância, onde o psiquismo ainda incipiente do bebê foi construído, principalmente através das relações que aquele bebê estabeleceu com os pais.

Para isso a psicanálise se valeu diversos estudos, principalmente de relatos de casos diversos. Isso instigou toda uma resposta contrária do meio científico, dizendo que relatos de casos seriam insuficientes para elaborar uma teoria que possa abraçar todas as doenças mentais. Hoje em dia temos inclusive a questão que nos parece tão óbvia da importância de determinantes genéticos, que eram quase que inexistente um século atrás, décadas antes da própria estrutura do DNA ser desvendada (mas não da genética como ciência, de fato).

À luz desses novos conhecimentos, perceberam-se novas possibilidades além das psicanalíticas (e tantas outras não-psicanalíticas que sempre existiram e ainda existem), que cito aqui exclusivamente por afinidade pessoal. O impacto da neurociência substituiu os mantras da psicanálise por um outro mais simples: é tudo orgânico. Segundo esse mantra a depressão teria uma causa orgânica, assim como a esquizofrenia, o TOC, a doença de Alzheimer ou a tricotilomania. Não se sabe exatamente o que seria isso, mas seria questão de tempo até que os bravos neurocientistas encontrassem a proteína ou o gene responsável por cada doença. E consequentemente o remédio que resolveria a praga de uma vez por todas.

Mas algumas décadas se passaram e mesmo com muitos milhões de pessoas ao redor do mundo tomando medicações psiquiátricas o número de suicidas continua aumentando. E não surgiu nenhum esclarecimento definitivo sobre o que de fato ocorre quando ficamos doentes. Continua sendo tudo achismo.

É claro que quando surge um trabalho que mostra que antidepressivos e ECT (eletroconvulsoterapia) podem de fato aumentar o número de sinapses no cérebro de pacientes com depressão e de fato restabelecer uma rede que foi rompida, isso deixa a gente animado. Mas isso é uma prova? Ainda não, isso é um indício, uma pista. Tem muito chão pela frente e é assim que a ciência evolui, a partir de dados e debates.

Daí sou obrigado a falar do assunto que eu não queria falar. Mas enfim, a culpa não é minha se quase toda semana o governo se comporta de forma grotesca, para dizer o mínimo. Voltou à pauta a questão do grande estudo feito pela FioCruz a respeito do uso de drogas no país. Como não é segredo para ninguém, o governo vem escondendo dados de uma pesquisa que foi encomendada por ele mesmo. Como não temos acesso à pesquisa toda, fica difícil debater o que de fato ocorre. Mas segundo Osmar Terra, ministro da Cidadania, pasta responsável pelas políticas de controle de drogas no país: "eles insistem em dizer que não há uma epidemia de drogas no Brasil". Ou seja, o ministro toma uma posição pessoal sua como verdade, senta em cima do maior estudo já feito sobre o assunto no país, simplesmente para não admitir que sua posição não se sustenta cientificamente.

Isso é justamente o contrário do debate científico que venho falando. A ciência e o desenvolvimento surgem do debate aberto e democrático. Quando o debate é abafado para uma posição cientificamente insustentável prevalecer, não há mais ciência. É um funcionamento de seita, onde os dogmas e achismos preponderam sobre as evidências. Não me surpreende que esse mesmo ministro queira repassar 150 milhões de reais para as chamadas comunidades terapêuticas, instituições de tratamento de dependência química geralmente ligadas a instituições religiosas. Só não confunda isso com ciência.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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