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Blog do Luiz Sperry

A Copa está chegando e promete nos salvar do 'complexo de vira-lata'

Luiz Sperry

21/05/2018 04h00

Crédito: iStock

Não foi sem espanto que reparei essa semana que a contagem regressiva para a Copa do Mundo 2018 já estava em menos de 30 dias. Como assim? Cadê as musiquinhas? Cadê as propagandas? Fora uma ou outra vinheta em russo no rádio ou na TV, para nos lembrar que a Copa é na Rússia, quase nada. A grande maioria apresenta uma sinistra indiferença. E os poucos que se manifestam vêm a público dizer que vão torcer contra –contra o Brasil, é claro.

Não me lembro de ter passado por uma véspera de Copa do Mundo tão estranha. Em parte, a gente entende: o país está de pernas para o ar, a crise se agravando e a luz no fim do túnel cada vez mais longe. Mas em outros anos o país não estava lá muito melhor, como em 1986, naufragando no Plano Cruzado, ou 1990 com o Collor confiscando as poupanças de geral, e mesmo assim o clima era de "Pra Frente Brasil".

Aí temos que lembrar que a última Copa foi aqui e, se o clima era de uma certa desconfiança antes (se está assim, "imagina na Copa" ou "não vai ter Copa", diziam), depois que o negócio começou foi aquela apoteose que a gente esperava que fosse. Pelo menos até a semifinal, quando fomos massacrados pela Alemanha e estamos até hoje sem entender o que de fato aconteceu naquele dia. Nunca iremos saber ao certo, digo já. Mas podemos pensar sobre.

O Brasil, desde o descobrimento, andou por caminhos tortos. Já era uma colônia desimportante para Portugal de início, teve uma independência complicada, chegou ao século XX com uma autoimagem nada promissora. Pátria da escravidão mais duradoura do Novo Mundo, culpávamos a miscigenação para explicar a fraqueza da nação. Afinal, não éramos melhores em nada. Em esporte nenhum, em ciência nenhuma. E a Argentina era muito mais rica. Não éramos senhores nem no Cone Sul.

O futebol já fazia sucesso por aqui. Já tinha existido Friedenreich, o primeiro ídolo do futebol brasileiro, mãe negra, pai de família alemã. Tão Brasil! Fomos semifinalistas em 1938 e 1954, vice em 1950,  em casa, caindo diante do Uruguai.

Vem então Nelson Rodrigues com sua sacada genial falar do "complexo de vira-lata". Nas palavras dele: "A inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima". Talvez não tivéssemos mesmo, olhávamos no espelho de Narciso e a imagem era feia.

Até 1958, na Copa da Suécia, quando surgiu um rei, negro (tão Brasil!) e finalmente triunfamos! Estávamos curados do nosso "complexo de vira-lata"! E veio o bi, o tri, e até mesmo na derrota de 1982 nos víamos belos! Qualquer imagem que o brasileiro fizesse de si mesmo passava, necessariamente, por ser um vencedor, ou ao menos um adversário a botar terror nos outros de quatro em quatro anos.

Aí veio a Copa no Brasil e justo a Alemanha, de quem desdenhamos em 2002, dizendo que jogavam um esporte "parecido com futebol", aplicou essa sonora piaba. Olhamos no espelho e vimos nosso Narciso embarangado. Aquela esperança de fazer tudo errado e ganhar no fim, pode esquecer. A alegria, a malandragem, o futebol moleque não resistiram à realität do futebol adulto e profissional dos germânicos.

Mais ainda, a camisa da seleção passou a ser identificada não como o símbolo de uma nação que poderia, mestiça, dar certo, mas como símbolo do ativismo de direita ou ainda de uma facção corrupta que se apoderou do establishment esportivo. A camisa do Brasil passou a ser associada à CBF ou ao MBL, que nunca tiveram grandeza para merecer tal manto.

O Brasil está em crise. Os brasileiros mais uma vez cospem na sua imagem. Querem se mudar para os EUA, o irmão do norte sem miscigenação. Ou para o Uruguai, o irmãozinho branco do sul. Ou mesmo para Portugal, a pátria-mãe europeia. Quanto trauma, tão Brasil…

Penso cá também que, por enquanto, ouve-se falar mais do casamento do príncipe da Inglaterra do que da Copa. Muito mais. O país que se odeia babando para ver o casamento de um príncipe (secundário) com uma atriz (secundária, e negra) na corte europeia. Vira-latismo puro.

Mas o único jeito de reconstruir o narcisismo ferido é vencendo de novo. Como nas eleições, o jogo está feio, creio que a Copa da Rússia vai ser uma ótima chance de darmos ao menos algum tipo de volta por cima. Para quem não está acompanhando, o time é bom de verdade. E aposto que, a exemplo do Carnaval que fica mais eufórico quanto pior está o país, assim que a bola rolar, o Brasil explode. Em verde e amarelo.

 

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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