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Blog do Luiz Sperry

Como o coronavírus mostra que tipo de pessoa cada um de nós é

Luiz Sperry

09/03/2020 04h00

Crédito: iStock

O coronavírus chegou ao Brasil. Na verdade aqui para mim ele chegou há um tempo já, trazido pelo imaginário das pessoas horrorizadas com a possibilidade da epidemia. Claro, são apenas poucos casos ainda, mas o assunto está aí todo dia: álcool gel, espirro no braço, beija-não beija são todos tópicos que tem feito parte do nosso dia a dia. Mas para que tem martelo, tudo parece prego.

Tem dois tipos de pessoas. Gente que não está nem aí para o coronavírus e gente que morre de medo dele. Entre esses existem os realistas, claro, que se atêm mais aos fatos que às suas próprias fantasias. As pessoas que não estão nem aí para a doença em geral partem de um pressuposto fantasioso de uma certa imortalidade associada com invulnerabilidade. É um tipo de gente que come qualquer coisa em qualquer lugar, atravessa a rua sem olhar, toma leite com manga sem pestanejar. Podemos descrever sua estrutura psíquica como um tipo algo narcisista, onde o fortalecimento do eu se tornou um espaço de conforto.

Já as pessoas que morrem de medo do Covid-19, nome de registro do vulgo corona, tem outra estrutura. Acreditam na fantasia de que o corona vai olhar de longe a população, olhar para elas e falar: "Você!" Pronto, vão ser infectadas. Não adianta você falar que são cinquenta casos em duzentos milhões, que é mais fácil ganhar na Mega da Virada, nada disso. Para um verdadeiro temente epidemiológico, "o cálculo das probabilidades é uma pilhéria", como dizia o poeta.

São descrições meio alegóricas, mas carregam um tanto de verdade. Porque descrevem dois jeitos de lidar com a realidade. Olhando mais atentamente, o que varia nestas posturas é justamente a questão: onde está o poder? O narcisista responde de bate-pronto: o poder está em mim! E aí você pode desfilar toda aquela lenga-lenga motivacional que está tão em moda nos últimos tempos. Você pode tudo! Tudo depende de você! E da sua vontade! Se você acredita nisso, sinto informar, mas você está errado. A realidade é soberana, de modo que às vezes você pode querer, tentar, espernear, fazer promessa, que o resultado não sai. Existem coisas que são impossíveis. E ponto.

Já a postura do temente é, sob esse ponto de vista, um pouco mais próxima da realidade. Você pergunta a ele onde está o poder e ele diz: em todos os lugares menos em mim! De fato, se pensarmos no mundo e em nós, não somos absolutamente nada. O problema do temente é que, nesse esvaziamento de poder, talvez até realista, ele acaba por precisar de salvaguardas e garantias infinitas para conseguir seguir em frente. É álcool gel (engraçado a questão do gel, como se qualquer álcool não funcionasse), espirro no braço, quarentena, cancela viagem, cancela baralho com as tias, cancela tudo. Nunca nada é o suficiente para suprir uma pessoa desempoderada de tudo.

O realidade é que não se pode tudo. Se deixar ao Deus dará, o bicho espalha para tudo que é lado, de modo que as medidas de contenção se fazem necessárias. No momento elas são basicamente medidas de higiene pessoal e contato entre as pessoas. Cabe aos serviços de saúde monitorar os casos, seus contactantes, observar e tentar restringir eventualmente o fluxo de pessoas relacionados a regiões e países com alta incidência da doença. Informação de fato não falta. Nunca vi tanto infectologista na TV, nem sabia que existiam tantos. O problema não é de ordem lógica.

O que tem ocorrido em alguns casos é a disseminação de uma histeria coletiva que se espalha ainda mais rapidamente que a própria epidemia. Na Ucrânia, um ônibus com pessoas que vinham da China foi apedrejado pela população. No Irã, uma multidão ateou fogo num hospital que supostamente estaria tratando desses casos. Aqui no Brasil, até aqui, ainda impera a nossa conhecida cordialidade. Até quando?

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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