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Blog do Luiz Sperry

Dá para viver com transtorno bipolar? História de boxeador é exemplo

Luiz Sperry

02/03/2020 04h00

Crédito: iStock

Uma das muitas coisas que herdei do meu pai foi gosto pelo boxe. Passava noites em claro esperando Mike Tyson destruir os adversários madrugada adentro. Eventualmente tinha um Adílson Maguila no domingo, menos demolidor, mas bastante divertido. Depois disso, lá pelos anos 1990, o boxe caiu em desuso aqui nessas terras tropicais, ao mesmo tempo em que o MMA despontava como arte marcial mais importante.

Pois bem, na semana passada houve um terremoto no mundo do boxe. Talvez a luta de pesos-pesadas mais comentada desde a fatídica luta entre Tyson e Holyfield, a famosa luta da mordida. De um lado o campeão invicto, o americano Deontay Wilder, conhecido como "The Bronze Bomber", dono de um dos golpes mais poderosos da história. Do outro o ex-campeão, também invicto, o britânico Tyson Fury, "The Gypsy King", um cigano gigantesco de 2,06 de altura. E sim, ele se chama Tyson em homenagem a Mike Tyson. Ambos haviam se enfrentado no final do ano passado e a luta terminara empatada.

Se você prestou atenção deve estar se perguntando como um lutador que nunca perdeu pode ser um ex-campeão. É aí que entra a questão psiquiátrica na questão. Fury foi diagnosticado com transtorno bipolar. Entrou numa crise depressiva pesada, não conseguiu defender o título. Entrou numa depressão pesada e passou a fazer uso pesado de álcool e cocaína. Engordou até chegar quase aos 200 kg de peso. Ficou de 2015 a 2018 sem lutar e foi, consequentemente, considerado perdido para o esporte.

Na verdade os problemas mentais de Fury começaram mais cedo. Seu pai dizia que já com 10 anos de idade ele já tinha variações de humor muito intensas. Estava feliz num momento e em seguida entrava em estado de tristeza profunda. O próprio pai, John Fury, tem problemas mentais crônicos e toma medicação há décadas.

O fato de ser um caso tão precoce é um pouco atípico, não é comum encontrarmos sinais de transtorno bipolar em crianças e pré-adolescentes. Em geral surgem um pouco mais tarde, no final da adolescência ou após os 20 anos de idade. Agora o pai com um diagnóstico de transtorno bipolar bem definido é certamente um fator de risco bem estabelecido. Pessoas com parentes de primeiro grau com transtorno bipolar têm um risco bastante aumentado para desenvolver a doença em algum momento da vida.

Outro fator de associação que observamos no caso Fury é o abuso de drogas. Pacientes bipolares têm uma probabilidade bem grande de fazerem uso abusivo de substâncias e se tornarem dependentes. Isso ocorre principalmente nas fases maníacas, mas pode persistir também nos períodos de depressão.

Ainda podemos citar o estigma da doença mental como mais um fato presente nesse combate. O campeão Wilder não deixou passar despercebido o problema de saúde de seu adversário e resolveu fazer troça: "Eu te tirei do buraco! Quando te encontrei você estava afundado na cocaína, do tamanho de uma casa, pensando em se matar! Você deve essa chance a mim!". O clima pesou tanto que a famosa encarada que precede as lutas teve que ser feita a metros de distância para que os lutadores não saíssem na mão antes do combinado.

Pois bem no dia da luta não deu outra; Fury derrubou Wilder duas vezes antes do córner do americano jogar a toalha no 7º round. Fury era campeão novamente. Com justiça, dedicou a vitória "a todos aqueles que sofrem com doenças mentais. Eu ganhei essa por vocês. Se consegui voltar de onde eu estava, vocês também podem. Então dê a volta por cima, nós vamos fazer isso juntos, como uma equipe!". E arrematou ainda se reconciliando com o adversário e cantando American Pie com a torcida.

Não é sempre que a volta por cima é possível. Inúmeros atletas tiveram suas vidas ou carreiras encerrados por problemas mentais. Mas é alentador olhar pelo outro lado, como um garoto, já com problemas mentais tão precoces, consegue chegar ao topo de uma carreira, descer ao inferno e emergir novamente triunfante. A vida, às vezes, vence.  

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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