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Blog do Luiz Sperry

A doença imaginária pode ser um transtorno real

Luiz Sperry

30/09/2019 04h00

Eu tinha mais ou menos uns 10 anos quando fui assistir ao Doente Imaginário de Moliére. Já era um evento coberto de expectativas, pois era uma peça encenada pelo bombástico Grupo Ornitorrinco, que alguns anos antes havia provocado um tsunami na minha geração infantil com o sucesso estrondoso de Ubu Rei alguns anos antes.

A peça não decepcionou. Era sobre Argan, um senhor assombrado por problemas de saúde intermináveis e, consequentemente, sua relação com os médicos que tentam ajudá-lo ou lhe passar a perna. Ainda me lembro do grande momento onde Argan desce à platéia em busca do seu olho, que foi perdido. Revira as bolsas das senhoras até que exclama triunfante: Achei meu olho! 

O Doente Imaginário é talvez a maior expressão de um transtorno mental que chamamos de hipocondria. Na hipocondria, via de regra, a pessoa acredita que tem alguma doença ou algum problema de saúde que simplesmente não existe. E isso obviamente leva a uma busca por profissionais e serviços de saúde incessante, além de causar um grande desgaste físico ou emocional para o paciente e para a família.

Nem todas as hipocondrias são iguais; enquanto alguns se fixam numa doença específica, outros passam por diversos sintomas e prováveis diagnósticos. Ou então enquanto alguns são bastante sem sentido e quase pueris, outros são muito convincentes e de fato confundem até mesmo os médicos mais experientes. Inclusive porque o hipocondríaco pode inclusive ter alguma doença real, que vai se misturar com a hipocondria e levar a um quadro bastante complexo.

Podemos dizer que quanto à sua estrutura, as hipocondrias seguem duas vertentes. A primeira é mais obsessiva, onde o paciente não consegue conviver com a possibilidade da dúvida de uma certa doença. Um exemplo que acho bastante ilustrativo é um quadro que podemos chamar de "disforia sorológica", muito frequente em populações com alta vulnerabilidade para HIV e outras ISTs. A pessoa realiza testes sorológicos de forma compulsiva porque sempre acha que pode ter se contaminado mesmo tendo tomado todas as precauções cabíveis para evitar o risco. O diálogo improvável fica mais ou menos assim: 

-Acho que posso estar com HIV, estou com medo.

-Mas você transou sem camisinha?

-Não! De jeito nenhum!

-Chupou, algo assim?

-Não Dr!

-Você não está inclusive tomando PREP?

-Estou.

-Esqueceu algum dia?

-Não.

-…

-Mas doutor…vai que…

Aí está. Mesmo a chance sendo zero a pessoa não consegue se livrar da dúvida, e essa dúvida a corrói por dentro.

Já nas vertentes psicóticas o quadro é dominado por uma grande certeza. A pessoa tem certeza de determinada doença e em geral tem uma explicação para isso. Lembro-me bem de uma senhora que vivia às turras com um "bicho" que haveria supostamente se alojado atrás de seu ombro e teimava em lhe causar um grande desconforto. Num dia de humor mais sombrio perdeu a paciência e resolveu tirar o bicho a qualquer custo. Pegou uma faca de cozinha e partiu em sua busca através da própria carne. Após retalhar o próprio ombro, desistiu e foi ao PS ser socorrida e tomar vários pontos para fechar o talho. Mas nem por isso se deu por vencida. Creditou o fracasso não a um equívoco anterior, mas sim à esperteza do bicho, "que se escondeu quando viu a faca". 

Hoje em dia a classificação vigente abandonou o termo hipocondria, que inclusive quer dizer "embaixo da cartilagem" e de fato não ajuda muito no esclarecimento da doença. Foi substituído então por Transtorno de Ansiedade por Doença que é mais específico mas ainda pode dar margem a interpretações outras.

Ironia do destino, gostei tanto da peça que hoje cuido justamente dos hipocondríacos. Não posso falar pelo pobre Argan, mas eu de fato achei meu olho.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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