Que tipo de adulto as crianças que vivem dentro dos apartamentos serão?
Tenho um certo pudor quando resolvo falar de aspectos comportamentais, principalmente quando envolvem as novas gerações. Corre-se o risco de cair em relativizações saudosistas que começam por "antigamente, no meu tempo", seguindo por descrições absolutamente imprecisas de como antes tudo era bom e hoje tudo é ruim. Inclusive, discordo dessa percepção. Acredito que, aos trancos e barrancos, o mundo está cada vez melhor. Mas isso não quer dizer que as coisas não venham mudando, e rápido.
Ontem mesmo estava conversando com um pai sobre seu filho. Ele, filho único, notou que o primogênito, também único, não tem uma turma. Não que o menino esteja com algum problema de relacionamento, muito pelo contrário, parece ser bastante afetuoso e querido. O que esse homem notou é que não existem mais turmas como existiam na infância dele (e na minha).
Lá nos anos 80 do século passado, era meio comum a gente andar em bando para cima e para baixo, jogando bola, taco, andando de bicicleta e afins. Hoje em dia, ao menos nos grandes centros urbanos, isso não existe mais. As turmas de amigos estão dentro de casa, geralmente jogando algum game, isso quando não o fazem online, cada um na sua casa.
O pediatra suíço Remo Largo faz considerações interessantes sobre o assunto. Ele ressalta que as interações sociais na comunidade em que vivemos são tão importantes quanto as relações familiares na formação da personalidade de uma criança. E que a convivência em família tem sido supervalorizada em detrimento do convívio social. Pessoalmente, acho isso bastante evidente. Os espaços públicos são cada vez menores. Por outro lado, é cada vez maior a tendência, odiosa, de viver trancado em condomínios. O número de pessoas que encontramos cara a cara é cada vez menor.
E aí precisamos complementar o tipo de interação social que teremos. Atualmente, um dos principais problemas é nossa relação doentia com os celulares. Pelo menos 50% dos adolescentes que atendo tem alguma questão com o uso excessivo dele. No entanto, estão nos aparelhos para conversar com outros adolescentes da mesma idade. Por horas e horas a fio.
O que noto, não apenas nos adolescentes, mas entre adultos também, é que o tipo de socialização que se faz por meio virtual é completamente diferente do que seria na vida real. As abordagens nos aplicativos de paquera, por exemplo, são completamente diferentes das que se fazem ao vivo. E confesso que fico curioso para saber que tipo de gente vai sair desse tipo de construção, após anos e anos fazendo de um jeito e, de repente, nos últimos quinze anos, calhou de agirmos diferente. Que tipo de adulto essas crianças, que vivem dentro dos apartamentos grudadas nas telas, serão no futuro?
Remo Largo, que é mais velho e mais sábio que eu, acha que elas terão (provavelmente já tem) dificuldades razoáveis de desenvolvimento e socialização. Inclusive porque não existe muito espaço para brincadeiras que seriam mais criativas. Para sair dessas bolhas, muitas vezes as crianças são inseridas em planos que lembram mais um treinamento do que propriamente o ato de brincar. Tênis, inglês, música, dança. Tudo isso pré-definido pelos pais, é claro.
Aqui do meu canto, apenas observo. E fico pensando que, se fosse criança hoje em dia, provavelmente quisesse que tudo fosse igual aos anos 1980. Com todos soltos por aí, estilo "Capitães de Areia" (do escritor Jorge Amado), passando Merthiolate no joelho ralado. Exceto na parte dos games, que hoje são muito, mas muito melhores!
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