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Blog do Luiz Sperry

No fim de ano a gente fica um pouco mais louco

Luiz Sperry

02/11/2017 04h00

A cada ano a história se repete. Passam os feriados de outubro, começam as decorações de Natal. Os panetones começam a ocupar as prateleiras dos supermercados. E, no consultório, começa a despencar gente de tudo que é lado. Entre os psiquiatras não se fala em outra coisa: quanto paciente grave!

A primeira vez que me dei conta desse fenômeno tem mais de 10 anos. Na época atendia muita gente que trabalhava no metrô. Fiquei impressionado com a quantidade de gente que se mata se jogando nos trilhos. Consequentemente, havia montes de operadores de trem, traumatizados por conta de atropelarem as vítimas. Lembro até hoje de uma mulher me contando sua pequena tragédia. Entre o Natal e o Ano Novo duas pessoas se jogaram na frente do trem. Na primeira ela conseguiu frear o trem. Na segunda, não. Ela me falava inconsolável: "Doutor, é sempre nessa época…"

Curioso é que os estudos dizem que não. Apesar das variações de um lugar para outro, em geral as pessoas se matam menos no final de ano. No mundo o pico da incidência de suicídio é em maio; por conta da luz do sol, dizem. Aqui no Brasil não temos uma variação tão marcada das estações, de modo que essa distribuição não se observa.

Mas eu posso dizer, sim, que observo que o fluxo por aqui muda. A demanda é pra já. Tudo emergência e crise. Até mesmo os pacientes antigos que andavam sumidos agora voltam com tudo. Todo mundo querendo consulta, receita, laudo e atestado. Muita gente nervosa e impaciente.

Penso cá com os meus botões. Primeiramente, o mais óbvio. Está todo mundo cansado, louco para chegarem as férias. Assim como quando a gente está apertado para ir ao banheiro e a vontade aumente conforme nos aproximamos, com as férias é a mesma coisa.

Sem contar que no final de ano temos um monte de complicadores conhecidos. Os preparativos das festas, os presentes que precisam ser comprados, as intermináveis confraternizações de todos os tipos. O trânsito piora, os gastos aumentam e as pessoas passeiam nas avenidas decoradas bem devagarzinho, para admirar as luzes natalinas.

Depois vem a questão de todo o simbolismo que o final de ano traz. As reuniões familiares geram sentimentos ambíguos nas pessoas. É muitas vezes difícil sentar em família para comer o peru e trocar presentes. Inevitavelmente surge um sentimento nostálgico de outros tempos e outras pessoas que já se foram. E um sentimento raivoso em relação a outros entes não tão queridos, que teimar em ficar e repetir a piada do pavê.

Fica também a frustração de todas as nossas resoluções de fim de ano. Aqueles dois quilos que a gente queria perder viraram cinco, o plano anual de academia continua sendo pago, mas a gente só conseguiu pegar firme até abril. O aumento não veio, a economia não melhorou e o colesterol ruim está nas alturas.

Bem, talvez por tudo isso as pessoas corram para o psiquiatra. Para poder reclamar de tudo isso e no ano seguinte continuar fazendo tudo de novo, igualzinho. Para se preparar para aguentar essa barra que é ter que viver, conviver, tolerar, trabalhar, descansar, comer, beber, celebrar. E ouvir a piada do pavê. No meu caso, contar.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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