"Blade Runner 2049" nos faz pensar: o que é ser gente?
Atenção: não contém spoilers, pode ler.
Assisti finalmente a "Blade Runner 2049", no último final de semana. Demorei até um pouco mais do que eu queria porque fazia muito tempo que eu assistira o "Blade Runner" original. Queria rever o primeiro antes de ver o segundo. Fiquei um pouco decepcionado com o primeiro quando revi, achei um pouco truncado, mas, analisando os dois juntos, até que faz mais sentido. As perguntas que se apresentam no primeiro filme estão lá no segundo, e continuam sem resposta.
O policial Deckard do primeiro filme não é exatamente um herói, é mais um anti-herói, na medida em que serve um regime boçal que cria pessoas para que sejam escravas e as destrói ao menor sinal de revolta. Ele começa a entrar em crise quando conhece a replicante Rachel, por quem se apaixona. "Como posso amar uma replicante e matar os outros pelo simples fato de serem quem são?" é a pergunta implícita que toma força ao longo do filme.
Essa pergunta faz a gente pensar numa outra questão maior: o que é ser gente? Parece apenas uma pergunta retórica, mas não é. Se a gente pensar no Brasil, até 1888, o negro não era considerado gente. Era um tipo de replicante, não construído, claro, mas importado da África para proporcionar trabalho e prazer para a Casa Grande. Inclusive podendo ser reprimido com violência, e até morto, ao menor sinal de revolta. O medo da revolta dos escravos no Brasil colônia é o mesmo medo da revolta dos replicantes em Blade Runner.
Não precisamos voltar tanto no tempo (e dadas as devidas dimensões, 1888 é logo ali) para conseguir outros exemplos. Por aqui as mulheres só puderam votar em 1932. E não precisamos nos sentir tão envergonhados: na Suíça, país bacana, rico, moderno, tem um lugar curioso chamado Apenzell, onde as mulheres só puderam ter o pleno direito a voto em… 1991! Isso mesmo, quando o primeiro Blade Runner já era um filme clássico.
Clássico já era Oscar Wilde no final do século XIX quando foi preso e condenado a trabalhos forçados. Wilde foi condenado por ter um namorado. Morreu em desgraça poucos anos depois. O namorado em questão, Lorde Alfred Douglas, não foi preso. Era filho do Marquês de Queensberry. Não, não tem nada a ver com a geleia do mesmo nome, se é que você pensou nisso. Mas marca bem que a boçalidade da sentença e o critério, "dois pesos, duas medidas" não são uma invenção recente. Mas sem dúvida permanecem atuais.
Voltando à grande tela, continuo o raciocínio. No filme novo aparece uma variante. Um replicante nascido, e não fabricado, seria mais humano? Aparece aí um conceito já familiar ao campo da psicanálise, que é o investimento amoroso dos pais. Que esperaram essa criança, escolherem um nome. Seria isso que definiria a humanidade? Ou é o amor do outro, como o amor do protagonista pela sua namorada virtual holográfica? E namorada holográfica sobreposta em cima de um corpo de garota de programa (talvez a cena mais bonita do filme)? E se ela for replicante? E se não for? Filho de replicante, vale? E mestiço de humano com replicante? E neto?
A série de perguntas levam para uma situação absurda onde só consigo pensar que tanto faz. Até uma questão em aberto do primeiro filme –seria Deckard um replicante?– perde a força e o sentido no segundo. No final das contas, o que vale é que o humano no filme é aquilo que se anuncia humano.
Claro que só falta combinar com a outra parte. Aos donos do poder, no filme representados pelas corporações, interessa marcar as diferenças, negar a humanidade do outro, que pode assim ser subjugado e escravizado. No primeiro filme, um dos charmes é que as linhas entre os mocinhos e bandidos é mais tênue. No segundo, um partido é tomado. É muito fácil para o espectador tomar um partido. Mas ao sair do cinema, o oprimido está aí, lutando pela sua existência. E a mensagem dos oprimidos é tão clara quanto atual: em 2049 ou em 2017, ou baila todo mundo ou não baila ninguém.
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